14/04/22

Parábola das mochilas (74/90)

       Nesta parte e nas duas próximas do estudo “Quem você será na eternidade?”, uma parábola original e sua interpretação.

      “Mesmo vós sabeis para onde vou e conheceis o caminho… disse-lhes Jesus, eu sou o caminho…” 
João 14.4, 6a

      Numa terra distante, há muito tempo atrás, uma mãe pede a um de seus filhos que viaje até um lugar. No destino está o pai, que por motivo de trabalho, mora longe da família. Para a viagem, a mãe dá ao filho mantimento na quantia adequada para a jornada e o guarda numa pequena mochila. O filho coloca a mochila nas costas, mas antes de partir a mãe lhe dá uma orientação, “tudo o que você precisa para sobreviver na viagem está na mochila, não pare em lugar algum para comer nada diferente, descanse se for preciso, mas não demais, e quanto à água, os rios no caminho lhe fornecerão”. 
      O filho caminha por um tempo, descansa, se alimenta com a comida que sua mãe lhe deu, mas após fazer isso algumas vezes sente-se entediado, para demais para descansar e não tem mais vontade de seguir, esquece-se da urgência da viajem. Com a ociosidade a descrença o domina, sente saudades da casa da mãe, desacredita que possa haver algo bom em seu destino final. Desanimado, a fome torna-se maior, mas como a viagem parece demorar não sente mais prazer na comida que a mãe lhe deu. O jovem viajante tem vontade de comer algo diferente, ao menos para preencher o vazio de sua alma. 
      Perdido em seu devaneio ele vê, à margem do caminho, uma estalagem. Desobedecendo a orientação da mãe ele entra na estalagem e pede para que lhe sirvam a melhor refeição que o lugar tem. Quando ele termina de comer, cai em si, lembra-se que não tem como pagar pela comida, e quando o dono da estalagem vem fazer a cobrança ele revela sua situação. Ele se surpreende, contudo, quando o dono diz que ele não precisa pagar, basta que lhe faça um favor, levar uma encomenda para o mesmo lugar que ele vai. Ele recebe a encomenda numa nova mochila e a põe nas costas, essa é grande e pesada.
      Revigorado ele anima-se e põe-se de novo a caminhar, ele diz a si mesmo, “agora vou fazer como minha mãe mandou, vou até o fim sem parar”. Contudo, a encomenda que lhe foi dada pesa, com o peso ele se cansa mais facilmente e precisa interromper a viagem mais vezes para descansar, com o descanso exagerado ele volta a ter saudades da casa da mãe. Ele reclama, “viagem inútil essa, vou para um lugar que nem conheço, por que meu pai está tão longe? Se me amasse estaria comigo, na casa de minha mãe, e eu nem precisaria caminhar tanto, trocar o certo pelo incerto, que tolice a minha”. 
      Novamente, perdendo muito tempo reclamando e imaginando, ele vê uma outra estalagem. Ele entra nela e faz a mesma coisa, pede a refeição mais cara, só quando termina de comer é que se lembra que não tem como pagar. Contudo, para sua surpresa, o dono dessa estalagem solicita a ele a mesma coisa que o outro dono pediu, que leve uma encomenda como pagamento pela refeição. Feliz por ter se livrado da dívida, ele aceita o encargo de levar a encomenda, também dentro de uma mochila, nem pergunta para quem deve entregá-la quando chegar ao destino, só quer se livrar da dívida e seguir.
      Com mais peso para levar, mais facilmente se cansa e torna a cair na armadilha de tentar se satisfazer com uma comida diferente. Dessa vez, contudo, ele entra em uma estalagem já com a certeza que não precisará pagar, que o dono vai lhe pedir o mesmo favor, levar uma encomenda. Ele pensa, “deve ser um costume nestas terras, para mim está ótimo, não tenho como pagar mesmo”. Mas essa terceira mochila é fatal, após andar só um pouco ele cai ao chão, exausto de levar tanto peso. Onde caiu ficou e prostrado não teve forças nem para voltar, nem para continuar, só quis ficar lá, quieto e sozinho.

      Meio morto, meio vivo, ele ainda tenta se alimentar com o mantimento que sua mãe havia lhe dado, mas não teve forças para nada, quando esse alimento acabou ele se resignou à morte, e ainda que estivesse às margens de um rio desfaleceu de sede. Num determinado momento, ouve uma voz, reunindo as poucas forças que tinha abre os olhos. Era um velho, de barbas e cabelos longos e brancos, mas com olhos vivos, faces rosadas e um sorriso iluminado. O velho o ajuda a se sentar, lhe dá água do rio, o alimenta e coloca na mochila que sua mãe tinha lhe dado algum mantimento.
      O velho diz ao viajante, “pode seguir viagem”, o jovem responde, “não posso, essas mochilas pesam demais”, o velho diz, “livre-se delas”, o viajante fala, “não posso, são pagamentos pelo que comi”, o velho responde, “venho atrás de você há algum tempo, passei nas estalagens e paguei tuas dívidas, você está livre desses pesos”. Contudo, o jovem torna a reclamar, “não tenho o que comer”, então diz o velho, “coloquei em tua pequena mochila alimento suficiente para você terminar a viagem, se seguir sem parar demais, não enjoará dele e chegará a seu destino a tempo”. 
      O viajante olha sua pequena mochila e há nela o mesmo mantimento que sua mãe havia lhe dado, contudo, não resiste à curiosidade de olhar as outras mochilas. Abre uma delas e se surpreende ao ver que há pedras nela, olha a segunda, a terceira, e vê a mesma coisa. O velho, já se afastando, avisa, “são armadilhas, o dono das estalagens dá pedras para os viajantes levarem, para que se cansem e desfaleçam, quando isso acontece ele vem, os prende e leva-os como escravos para trabalharem nas estalagens”. O jovem percebe, então, os donos das estalagens eram a mesma pessoa.

      Continuando a viagem, o jovem algumas vezes foi tentado a parar demais para descansar, a ter saudades da casa da mãe, a comer algo diferente, mas resistiu, levantou-se e seguiu em frente, ele enfim havia aprendido a lição. Chegando perto de seu destino já podia ver, lá longe, a casa de seu pai, esse estava à porta. Fazia muito tempo que ele não o via, nem se lembrava mais como era o rosto do pai. Contudo, ainda longe, o pai gritou, “venha meu filho, estava te esperando, demorou um pouco, mas você conseguiu chegar, estou muito feliz por isso, aproxime-se e conheça a tua parte na herança”. 
      A voz do pai lhe deu forças, assim ele caminhou os últimos metros correndo, contudo, quando chegou e viu o rosto do pai, ele o reconheceu, era o velho que o havia ajudado no caminho, que tinha pago suas dívidas. O jovem viajante disse então, “era você, não te reconheci”. O filho, então, entendeu, o pai não estava longe dele, mas caminhava secretamente com ele, bem perto, durante todo o caminho. O pai não era seu destino, mas o próprio caminho. Sua missão não era alcançar o destino, mas percorrer o caminho obedecendo as orientações que recebeu, aprendendo a viver bem com pouco. 
      O filho entrou na casa do pai e perguntou, “que trabalho é esse que o senhor faz, que precisa ficar tão longe de mim?”. O pai respondeu, “eu faço dois trabalhos, um é administrar os que trabalham aqui nas terras, e não pense que aqui não há trabalho para você fazer, mas aqui poderá trabalhar perto de mim, administrando tua herança. A viagem foi para isso, para te preparar para estar aqui. O segundo trabalho faço indo até à casa de sua mãe e acompanhando meus filhos até aqui, você tem muitos irmãos e eles também precisam fazer a viagem corretamente e chegarem aqui, o destino de todos”.
      O filho fez outra pergunta, “o senhor nunca fica com a mãe?”. O velho respondeu, “estivemos juntos por um tempo, gerando filhos, e estaremos juntos também no final, quando todos os filhos estiverem aqui, mas neste ínterim é necessário que estejamos separados, cada um cumprindo sua missão. Ela cria os filhos até chegarem à juventude, depois o caminho os amadurece, quando fazem suas jornadas sozinhos, finalmente estão perto de mim, mas ainda aprendendo. Quando estiverem prontos irão a novas terras, conhecerão mulheres e constituirão famílias, serão novos pais, eis o ciclo da vida”. 
      Mas uma terceira pergunta o filho ainda fez, “quem é o dono das estalagens?”. O pai respondeu, “foi um viajante que não quis chegar ao seu destino. No início era só um escravo de um outro dono de estalagens, mas com o tempo até o antigo dono escolheu chegar ao seu destino, partiu e deixou em seu lugar o escravo mais antigo. Trabalhando nas estalagens muitos, com o tempo, até acham terem encontrado um sentido na vida, mas lá eles são apenas escravos, sem direito de ir e vir, sem posses, só assistem jovens iludidos se satisfazendo com o prazer enganoso que se vende nas estalagens”. 
      O filho tornou a falar, “até o dono das estalagens foi jovem? ele parecia tão insidioso”. “Sim”, disse o pai, “todos começamos como jovens viajantes, inclusive eu, enviados à terra de um senhor”, “então, o senhor não é dono de tudo?”, perguntou o jovem, “não, só cuido de quem administra as terras para o dono de tudo, como eu existem outros”, disse o pai. O jovem tornou a falar, “fará isso sempre?”, “não”, respondeu o velho, “só até meus filhos chegarem aqui, minha missão não é cuidar de terras, mas de vidas, quando terminar eu e tua mãe moraremos na casa do dono de tudo, lá há descanso”. 

Esta é a 74ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

13/04/22

Nós seremos a água (73/90)

      Para melhor entendimento desta reflexão, leia as duas reflexões anteriores. 

      “O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós. Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis; porque eu vivo, e vós vivereis. Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós.
João 14.17-20

      Reflitamos mais um pouco sobre a “parábola das águas”. O viajante tentou beber a água diretamente da cachoeira, mas ela caia com muita força, quase o afogou, por isso usou a caneca, ainda que furada era o meio mais adequado para que ele levasse água à boca. No mundo somos seres divididos, parte de nós é matéria, parte de nós é espírito. Por que é assim, se na eternidade seremos espíritos puros, se esse é o estado onde seremos plenos? Por que apraz a Deus nos colocar no plano físico, ainda que seja por um curto espaço de tempo, num conflito interior insolúvel? Parece até que Deus nos quer fazer sofrer de propósito?
      Entretanto, qual o problema de sofrer? Não, não me refiro a sofrimentos desnecessários, estúpidos, que exaltam agressores, humilham oprimidos, que são consequências de preconceitos e injustiças sociais, contra esses devemos lutar e não aceitar de forma alguma. Me refiro ao sofrimento interior de todos, que existe por causa do nosso orgulho, do nosso medo, de nossa insistência em buscarmos prazer nas coisas materiais e erradas, que são erradas porque fazem mal aos outros e a nós mesmos, e na verdade as duas coisas sempre estão relacionadas, e que só nos prejudicarão espiritualmente, neste mundo e muito mais no outro. 
      Ninguém vence a si mesmo sem aprender a suportar o sofrimento. Isso não é fugir da dor, e nem aceitá-la, mas conviver com ela em paz e com humildade, para isso Jesus veio ao mundo, para ensinar-nos a administrar a dor do conflito entre matéria e espírito. Por isso a caneca furada, por isso não conseguimos viver o tempo todo em um êxtase espiritual, fazer é pôr a cabeça diretamente sob o jato de água, isso pode prejudicar nossa sanidade mental. Pedro, João e Tiago quiseram perpetuar um momento quando viram Jesus transfigurado com Moisés e Elias em Mateus 17.1-9, não entendiam que eram canecas furadas. 
      Na eternidade poderemos ser, não canecas, vasos ou qualquer recipiente para reter água, para conter unção, seremos mais que templos do Espírito, existiremos no Espírito, seremos a própria água, e por isso poderemos nos encher dela sem nos prejudicar. Aqui nos cabe acostumarmos-nos com ela o mais que pudermos, mas sabendo que no mundo água que sacia a sede também afoga, e eis aí uma metáfora de um mistério espiritual. Como algo bom pode fazer mal? Faz se exagerarmos na contemplação e nos esquecemos da realidade, o viajante não podia permanecer à beira do riacho, ele tinha que seguir viajem.
      Por melhor que fosse se saciar e se refrescar com a água do riacho, a missão do homem da parábola não era estar na água o tempo todo, a água devia ser usada de vez em quando, em poucas quantidades, sua missão principal era colocar os pés na terra e seguir. Nossa missão nesse mundo não é estarmos dentro de templos o todo tempo, termos experiências espirituais sempre, nossas mentes não suportam isso. Temos que trabalhar, nos alimentar, descansar e principalmente nos relacionarmos com as pessoas. É administrando essa vivência limitada que atravessamos o caminho, servindo em humildade e amor as outras pessoas.
      Jesus, como sempre, nos mostra como vivermos corretamente. Ainda que tivesse consciência de sua alta espiritualidade, de que, como ensina a tradição cristã, “fosse Deus”, ele não vivia como tal, mas como homem. Acreditem ou não, mesmo o Cristo era uma caneca pequena e furada e ele sabia disso, sim, Jesus homem também era limitado. Mas ele sabia viver com equilíbrio, de modo que interagisse com os homens, em amor, no ensino, no exemplo prático, e ainda assim tivesse muitos períodos solitários de oração e consagração. Ele sabia manter sua caneca cheia o máximo possível e prosseguir até seu difícil destino.

Esta é a 73ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

12/04/22

Uma caneca furada (72/90)

      Para melhor entendimento desta reflexão, leia a reflexão anterior. 

      “Porque Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós.” 
II Coríntios 4.6-7

      Segue a interpretação da “parábola das águas”. Neste mundo estamos num caminho a pé, não de carro, nossa evolução depende de nossas forças. Podemos até usar mecanismos artificiais para prosperarmos materialmente, mas só o que conquistarmos com nossas virtudes aliarão ao nosso homem interior crescimento moral. Quando iniciamos nossa caminhada recebemos dos que nos criaram um cantil, ele é a forca necessária para o início da jornada. Ele, contudo, dura só algum tempo, não é para sempre, quem quiser essa força inicial por mais tempo acabará sempre voltando ao início do seu caminho, perdendo tempo e não chegando ao destino. Se o viajante quisesse um cantil novo teria que voltar ao ponto de partida de sua viagem. 
      A parte mais importante de nossa caminhada fazemos sozinhos, descobrirmos por nós mesmos os meios para alcançarmos nosso destino. O cantil e a caneca estão furados? Mas é para ser dessa maneira, cantil têm data de validade, um dia devemos nos livrar dele, a caneca não tem, mas tem uso limitado. Nosso passado é um cantil furado, até nos ajuda por um tempo, mas em determinado momento perderá sua utilidade, porque ele é a história dos outros, não a nossa. Como indivíduos devemos construir nossa própria história. Nossa alma é uma caneca furada, ela pode e deve ser usada, não substituída, mas administrada. É nela que construímos nossa história, é ela que é enchida com a água que mata nossa sede, para que tenhamos forças para seguirmos.
      A água que recebemos inicialmente em nosso cantil nos ajuda no início, mas depois temos que descobrir onde está o rio e dele recebermos água para saciarmos nossa sede. O irónico da história é que quem idolatra o cantil não percebe que o rio está perto, margeando o caminho, assim quem se prende às tradições de família e de religião não percebe que isso é base para início, mas não saciará durante todo o caminho. O que nos sacia no caminho é uma experiência nova, viva e diária com Deus, o Espírito Santo é a água limpa e fresca que Deus nos dá à medida que caminhamos em sua vontade. Não é fácil acharmos esse rio, apesar dele estar perto da gente, é preciso a calma que abre os ouvidos espirituais e discerne o ruído das águas. 
      Não há vida sem oração, mas vida de oração é algo que se transforma. Cada vez que buscamos a Deus é diferente, e é assim para que nos esforcemos mais e cresçamos. O caminho se segue com trabalho, mas o trabalho agita nossa alma, que precisa ser acalmada para achar a água viva do Espírito que nos sacia, para que possamos continuar caminhando. Isso estabelece o conflito permanente entre corpo e espírito, que enfrentamos no mundo, para o qual devemos achar equilíbrio. Não devemos anular o corpo, nem iludir o espírito, ambos são necessários para que nosso destino seja alcançado. Além desse conflito temos outro desafio, usar uma caneca furada, isso é um exercício de humildade, eis um mistério que muitos não entendem. 
      Parece que seria bem mais fácil termos uma caneca grande e em perfeitas condições, nos esforçaríamos menos para fazer algo tão importante, saciarmos nossa sede e assim prosseguirmos mais rapidamente em nossa caminhada. Mas não é assim, por quê? A água é o alimento espiritual que saciando nosso espírito fortalece nosso emocional, nosso racional e nosso corpo físico, quando temos um encontro poderoso com Deus em oração somos plenamente fortalecidos. Não seria bom termos um encontro assim é termos forças para caminharmos por muito tempo, sem precisarmos orar novamente? Mas a caneca é furada, não retemos unção do Senhor por muito tempo, temos que enchê-la com a água do Espírito, pacientemente, todos os dias. 

Esta é a 72ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

11/04/22

Parábola das águas (71/90)

      Nesta parte e nas duas próximas do estudo “Quem você será na eternidade?”, uma parábola original e sua interpretação. Fico muito feliz quando o Espírito Santo me dá graciosamente esse tipo de inspiração. Ensinar conceitos espirituais dessa forma é tão prazeroso quanto didático, poético quanto religioso, por isso o mestre das parábolas, Jesus Cristo, usava tanto esse recurso literário.

      “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas.” 
Salmos 23.1-2

      Um homem, cansado, após caminhar por algum tempo em sua viagem, procura pelo cantil com água. Quando o pega dentro da mochila, percebe que está vazio, com a boca seca ele senta-se sobre uma pedra, fecha os olhos, respira fundo e procura se acalmar. Com o coração batendo mais tranquilo, com a respiração espaçada, profunda, mas silenciosa, ele consegue ouvir mais que o próprio corpo, que a própria alma, ele ouve a natureza. Ele procura por algo que vá além do canto dos pássaros, da brisa que bate em seu rosto, ele procura pelo barulho das águas. No meio daquela floresta, se ele subisse numa árvore conseguiria ver melhor, mas está muito cansado para isso, assim decide prestar atenção para ouvir melhor. 
      Após alguns momentos de calma, ainda com a boca seca, ele ouve, baixinho, não muito distante, o som de águas caindo. Que som delicioso, só de ouvir o homem já se sente melhor, já se sente refrigerado. Então, ele se levanta, devagar, ainda com os olhos fechados, mas com os ouvidos bem abertos, afinados. Ele se vira e abre os olhos só um pouco, precisa ver para onde deve ir, mas não quer que seus ouvidos se distraiam. Ele se movimenta devagar, mas com certeza, sabe para onde se dirige, o som das águas aumenta de volume aos poucos, ele percebe que se aproxima do lugar. Ele aumenta a velocidade, agora os olhos já estão abertos, ele pode até sentir o cheiro, então, ele vê, entre as árvores a sua frente, a água. 
      É um pequeno riacho, cercado por uma formação rochosa que abraça as águas, que junto de altas árvores escondem o lugar. Só tem uma entrada, estreita, as pessoas poderiam passar bem ao lado do local e não o veriam, mas escutariam o ruído das águas se prestassem atenção. No lado oposto da entrada, caindo da formação rochosa, um filão não muito largo, mas concentrado de água, é ele que mantém o riacho vivo. O homem não entende, o riacho não é fundo, ainda que a água jorre sem parar ela não inunda o lugar, é como se o líquido caísse ao chão e sumisse nas entranhas da Terra. Ele tem sede, o riacho é raso demais para pegar água separada de areia, assim ele vai até a queda d’água, lá o líquido é puro e fresco. 
      Ele dá alguns passos e coloca a cabeça debaixo do filão de água, mas a água caí com muita força, ele quase se afoga, ele tira a cabeça e tenta de novo, outra vez a água entra pelo seu nariz e ele cai. O homem pensa, tenho uma caneca na mochila, é pequena, mas serve. Ele põe a mão dentro da mochila e acha a caneca, contudo, surpreende-se ao ver que a pequena caneca está furada, ainda assim ele a coloca sob a água que jorra. Pela força da água, pelo tamanho da caneca e pelas condições dela, furada, ele consegue levar pouca água à boca de cada vez, assim, pacientemente ele move a caneca da cachoeira para a boca, várias vezes, tomando só um pouquinho de cada vez, até que tenha sua sede totalmente saciada. 
      Satisfeito, ele senta-se à beira do riacho, lava o rosto e olha para o alto, o céu está azul, o Sol não é forte, ainda que esteja no meio do dia. Ele abaixa a cabeça, vê o reflexo do céu na água e fecha os olhos, pensa no que ficou para trás e no que ele encontrará em seu destino, anima-se, a viagem ainda não acabou, há muito para andar. Ele pega o cantil, quer enchê-lo e seguir viagem, contudo, percebe que o cantil também está danificado, e de um jeito que não pode mais ser usado, assim ele se livra dele. Então, ele olha para a queda d’água à sua frente, ela vem de um leito de rio que está acima das rochas, ele percebe que o rio margeia seu caminho, ele entende que se seguir perto do rio terá água para toda a viagem.   

Esta é a 71ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

10/04/22

Humanidade tóxica (70/90)

      “Porque sei que são muitas as vossas transgressões e graves os vossos pecados; afligis o justo, tomais resgate, e rejeitais os necessitados na porta. Portanto, o que for prudente guardará silêncio naquele tempo, porque o tempo será mau. Buscai o bem, e não o mal, para que vivais; e assim o Senhor, o Deus dos Exércitos, estará convosco, como dizeis.” 
Amós 5.12-14

      Em 4 de maio de 2021, após quase dois meses num leito de u.t.i., faleceu Paulo Gustavo, vítima de complicações pela Covid 19. Ator, comediante, casado com um companheiro e com dois filhos, sucesso na TV, no teatro e no cinema, amado por muitos, um talento singular de luz. Muito triste, mas mais triste foi a posição que muitos, que se dizem evangélicos, incluindo pastores, tomaram, condenando o artista por sua sexualidade, vendo em seu sofrimento um castigo por simplesmente ter nascido e vivenciado quem era, tanto na vida pessoal como na vida profissional. 
      Que haja misericórdia para a “cristandade tóxica”, que não pratica evangelho genuíno, que mantém preconceitos por não buscar a Deus e conhecer sua vontade, homens querendo agradar homens e julgando homens, guiando-se por uma interpretação errônea da Bíblia. Fico indignado com algumas coisas, mas essa ignorância com que tantos evangélicos tratam homoafetivos, aliando ao diabo e ao inferno pessoas que nascem diferentes do padrão sexual binário, revolta-me especialmente. Nesta reflexão pensemos sobre a “toxidade” presente no tempo mau em que vivemos. 
      Existe masculinidade tóxica, mas também existe feminilidade tóxica, assim como homosexualidade tóxica, o problema não está em ser masculino, feminino ou homoafetivo, mas em ser tóxico. Da mesma maneira o pecado não está em ser masculino, feminino ou homoafetivo, mas em ser promíscuo, mas enfim, o que vem a ser tóxico nesse contexto? É o uso de certas características em jogo de poder para oprimir alguns e beneficiar outros, de forma injusta e até violenta, usando como justificativa estereótipos que generalizam seres humanos por clichês e exageros.
      Tais estereótipos até foram aceitos no passado como algo normal, usando mesmo argumentos religiosos para defendê-los, mas não podem ser mais aceitos numa sociedade que busca igualdade de direitos, num entendimento, não superficial e exterior, mas profundo e interior de cada ser. É claro que a masculinidade branca tóxica é a mais forte porque foi a que predominou por mais tempo, mas isso não significa que não existam outras toxidades, assim jogar toda a culpa no homem como agressor e entender, quase que automaticamente, os outros como vítimas, não é justo. 
      Na masculinidade, ser tóxico é usar truculência física para obter algum benefício, principalmente na área sexual, de quem está em posição inferior. Na feminilidade, ser tóxico pode ser usar sensualidade, a exibição do corpo e mesmo o jeito de se portar, para manipular alguém e obter algum benefício. Mas a toxidade pode ser usada para se prevalecer em outras áreas, que não a sexual, na área profissional, por exemplo, vemos muitas mulheres sendo tratadas injustamente só por serem mulheres, com salários menores e menos direitos a promoções e planos de carreira. 
      Mas até que ponto sedução é arma de violência, ainda que não seja truculência física? Isso é delicado, e pode ser usada tanto por mulher quanto por homem. Em se tratando de homoafetividade tóxica o assunto pode ficar ainda mais complexo, visto que no conceito de sexualidade atual há muitos tons de cinza entre o branco e o preto, misturando características físicas e afetivas. Uma mulher trans, por exemplo, com características físicas masculinas, pode usar de truculência com um hétero, por ser fisicamente mais forte que ele, ainda que se traja, que se sinta, que se identifique como mulher. 
      Da mesma maneira um gay, se for fisicamente mais frágil, pode ser forçado fisicamente por uma mulher hétero a fazer alguma coisa, assim, toxidade não tem a ver com sexo, com masculino contra feminino, ainda que possa usar sexo para se estabelecer, mas com forte contra fraco, quem é opressor o será seja qual for sua identidade sexual. O mundo está ficando muito complicado, mas homem que se impõe por força bruta é tão errado quanto mulher que usa mal atributos físicos, e vice-versa, a solução está no respeito das competências certas nas áreas certas, indiferente de sexualidade. 
      Na eternidade não haverá homem, mulher, trans ou qualquer outra identidade sexual, só espíritos. O ideal seria as pessoas serem valorizadas por suas essências interiores, não pelos seus corpos, mas no mundo vemos mais facilmente os corpos, para discernir luz espiritual é preciso uma comunhão com o mundo espiritual que muitos não buscam. O que levaremos do mundo à eternidade? Não será sexualidade, mas virtudes morais, estabelecidas pela maneira correta como administramos dores e desejos, se buscamos cura para isso, ou se só inventamos justificativas para continuarmos tóxicos. 
      Infelizmente também existe “cristandade tóxica”, contudo, ainda que muitos cristãos creiam em penas eternas, achem que os conceitos tradicionais sobre sexualidade e família são os únicos agradáveis a Deus, se ainda assim compartilharem o perdão e a paz que existem em Cristo, deixando que Deus faça sua obra, serão bênçãos. Que guardem seus juízos no coração e não tentem convencer ninguém por medo ou violência, mas por testemunho de vidas humildes. Se agirem assim, ainda que crendo em certos equívocos, serão úteis no mundo e atraídos por Deus à sua melhor eternidade, o céu. 
      O problema é que muitos cristãos constróem álibis com textos bíblicos para não precisarem amar, fazem isso com homoafetivos, mas também com religiosos não cristãos. Muitos cristãos creem que todo homoafetivo é “sodomita”, condenado só por ser homoafetivo e não por ter vida promíscua (que é o que a Bíblia pode ensinar em textos sobre “sodomitas”), não entendem que a verdadeira homoafetividade é afeto emocional, não relação física sexual. Por isso se acham no direito de condenar todos os homoafetivos, e se esses estão no inferno são inimigos que não precisam de amor.
      Nisso o amor de Jesus é esquecido e o “diabo” tem vitória justamente no coração dos que se dizem seus inimigos, mas o pior é que o “diabo” vence em nome de uma bandeira que os cristãos acham que é de Deus, irônico tanto quanto terrível. O amor sempre liberta, tanto ao que ama quanto ao que é amado, mas o que ama o oprimido faz mais que sua obrigação, é instrumento de Deus para ajudar o que está em posição de fraqueza. A solução está no amor, só amamos quando recebemos de Deus amor, só o amor pode anular todo tipo de toxidade humana, mesmo a do falso cristianismo. 

Esta é a 70ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

09/04/22

Mais que número numa lista (69/90)

      “E, Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e possuído de íntima compaixão para com ela, curou os seus enfermos.” 
Mateus 14.14
      “E quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, viu-o e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, porque hoje me convém pousar em tua casa.
Lucas 19.5
      “E uma mulher, que tinha um fluxo de sangue, havia doze anos, e gastara com os médicos todos os seus haveres, e por nenhum pudera ser curada, Chegando por detrás dele, tocou na orla do seu vestido, e logo estancou o fluxo do seu sangue. E disse Jesus: Quem é que me tocou? E, negando todos, disse Pedro e os que estavam com ele: Mestre, a multidão te aperta e te oprime, e dizes: Quem é que me tocou? E disse Jesus: Alguém me tocou, porque bem conheci que de mim saiu virtude.
Lucas 8.43-46

      A morte, a única certeza que temos em vida neste mundo, pode ser a coisa mais triste que podemos experimentar, para quem vai? Talvez, certeza absoluta sobre o depois muitos só terão após morrerem, mas com certeza pode ser muito triste para quem fica, quando se vai alguém próximo, que se ama. Entretanto, a mesma morte que nos marca de maneira extrema com uma dor irremediável, pode ser banalizada, como em guerras e grandes catástrofes. Nesses casos acaba partindo tanta gente e tão depressa que muitos podem achar que uma morte é só mais um número em uma lista. A pandemia do Corona vírus é uma guerra, contra um inimigo microscópico, mas poderoso, e que não tem lado, está contra todos em todo o planeta.
      A pandemia tem nos confrontado todos os dias com a morte, seja na TV, na internet, mas também na realidade ao vivo bem próxima a nós. Com a precisão e a rapidez que as informações chegam hoje, com nitidez de imagem 4k e qualidade de som surround, a verdade não pode ser negada, só não se sensibiliza quem já está há muito embrutecido pelo egoísmo, ainda que disfarçado pelo negacionismo estúpido de alguma ideologia equivocada. Quando vemos uma família chorando pela morte de uma mãe, de um pai, de um filho, de um avô, porque o vírus não escolhe idade ou sexo, sentimos na carne, sabemos que do jeito que as coisas estão no momento atual, amanhã isso poderá acontecer conosco, isso não é brincadeira. 
      Hoje uma morte não é só mais um número numa lista, quando morre uma pessoa, em qualquer lugar do planeta, todos morremos juntos. Contudo, isso é mais que uma tragédia, é Deus ensinando a todos uma lição, sobre algo com o qual estamos sendo relapsos, que lição é essa? É sobre amar, que se não aprendemos a vivenciar do jeito fácil, aprenderemos pelo jeito mais difícil. É sobre dar valor às coisas certas, que não vale a pena perder tempo com bobagens e prazeres passageiros. É sobre espiritualidade real, que só existe algo que nos prepara para irmos e nos dá consolo se alguém se vai, uma comunhão real com o Deus verdadeiro. Estamos entendendo essa chamada de atenção ou só nos conformando com estatísticas? 
      Como nos escondemos atrás de leituras de estatísticas, de números, jogando as pessoas em pacotes e não enfrentando a individualidade de cada ser e sua consequente relevância. Quando vemos filas e aglomerações na tela da TV ou do celular, para receberem alimentos de uma ação social, esperando notícias de um parente internado num hospital, num velório municipal, não são números, cem, quinhentas, mil pessoas, mas indivíduos. É o José, a Maria, o Tadeu, a Cecília, e cada um desses tem família, necessidades, também sonhos, amam e sofrem, como eu e você, e sendo assim poderia ser também eu ou você em seus lugares. A cada um Deus ama, atrai às regiões celestiais mais elevadas em Cristo, quer dar paz e luz. 
      Você, quando olha estranhos nas ruas, gente que não convive com você, que talvez você nunca conheça de perto, já pensou quem serão eles na eternidade? Irão para o céu, para o inferno? Que experiência eles têm com Deus? Mas tão ruim quanto o desprezo é a arrogância, que muitas vezes nos leva olhar estranhos e pensar que somos melhores que eles, mais privilegiados por sermos cristãos e eles não. Como é cômodo pensar que por mais que o inferno seja ruim e que sofrer nesse mundo é trágico, muitos experimentam isso porque escolheram, porque são maus, assim alguém na danação eterna se torna também só mais um número numa lista de condenados. Essa não é a ótica de Deus, e não deveria ser a de quem se considera seu filho.
     Segue um mistério que muitos não entendem. Em algum momento de nossas existências teremos que exercer nossa missão principal, servir ao próximo, ninguém escapa disso porque esse é o único caminho para alcançarmos o “céu”. Alguém que hoje você despreza, que acha que não é sua obrigação ajudar, que é problema de outro, não seu, que você não tem chamada para ajudar, em um momento de sua existência você terá que ajudar, e bem de perto, de um jeito ou de outro. Dessa forma, o quanto antes você entender, aceitar e praticar isso, melhor para você, e nem é para o outro, porque se você não fizer sua parte Deus levanta outro para fazer, o pequenino de Deus, o pobre, o necessitado, o humilde, nunca é só um número. 
      Deus nos conhece e nos atende individualmente, vê o clamor da multidão, mas reconhece Zaqueu sobre a árvore e a mulher com fluxo de sangue que o toca em meio à multidão. Um Deus antropomórfico não teria essa capacidade, esse poderia amar alguns e desprezar outros, mas Deus não despreza ninguém, nele só há virtudes e no nível mais alto. Muitos, contudo, estão impossibilitados de orar, estão pobres, famintos, acamados, mesmo em coma, enfraquecidos demais física e intelectualmente para clamarem pelas vidas, por isso os que estão mais fortes devem fazer isso por eles. Nesses tempos difíceis é importante que os que podem orem e ajam, alguém não ser só um número numa estatística é responsabilidade de todos nós. 

Esta é a 69ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

08/04/22

Nossos filhos na eternidade (68/90)

      “Rogamo-vos, também, irmãos, que admoesteis os desordeiros, consoleis os de pouco ânimo, sustenteis os fracos, e sejais pacientes para com todos.
I Tessalonicenses 5.14

      Nas virtudes morais os pais são espelhos para seus filhos, 
filhos serão aquilo que seus pais são em suas vidas práticas;
agir certo é o que dá autoridade para ensinar o que é certo, 
e não só falar ou intencionar; a verdade sempre prevalece. 

     Não coloquei passagens do livro de Provérbios (13.24, 23.13-14, 29.15 e 17) como iniciais para esta reflexão, mas vou citá-las. “O que não faz uso da vara odeia seu filho, mas o que o ama, desde cedo o castiga.” “Não retires a disciplina da criança; pois se a fustigares com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara, e livrarás a sua alma do inferno.” “A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma, envergonha a sua mãe.”Castiga o teu filho, e te dará descanso; e dará delícias à tua alma.”. Leu com atenção os textos? Tente verificar a austeridade dos termos usados.
      O mais triste é que tem crente sincero, bem intencionado, querendo ser obediente a toda a Bíblia, achando que ter em casa uma varinha para surrar os filhos para discipliná-los é vontade de Deus. Tem até um argumento usado para defender esse costume, bater com a vara faz a criança aliar violência à vara, não à mão do pai que deve ser aliada só a dar carinho. Não consigo entender a lógica dessa transferência, mas o que não se inventa para não se dar ao trabalho de buscar a Deus, e se receber orientação viva do Espírito Santo, ao invés de se seguir cegamente um texto antiquado de uma sociedade do passado.   
      Por que não vou usar os textos de Provérbios como base para uma reflexão cristã sobre como criar filhos corretamente? Porque não devem ser tomados, principalmente se entendidos ao pé da letra, como orientação de Deus para criarmos filhos hoje. Eles estão na Bíblia? Estão. Mas não devem ser considerados? Ao pé da letra, não! Mas mesmo que não forem tomados ao pé da letra é preciso algum esclarecimento do Espírito Santo para retirarmos deles princípios e usá-los adequadamente. Assim é com muitos textos bíblicos, principalmente aqueles relacionados à sociedade, família e sexualidade. 
      Então, como devemos criar filhos para que possam morar no céu conosco, usando um entendimento bem simplista? Da melhor maneira possível. Isso lhes garantirá o céu? Eu até creio que sim, se plantamos, colhemos, mas talvez não do jeito que muitas igrejas e muitos pastores pregam e acham que será. Entendamos uma verdade: não somos donos de nossos filhos, aliás, não somos donos de ninguém, não temos o dever de decidir por eles, nem o direito de que eles sejam o que queremos que eles sejam. Somos mordomos temporários de seres humanos, que devem ser criados no mínimo para serem independentes.
      Essa verdade, ainda que seja o entendimento mais sábio e mais de acordo com a vontade de Deus, pode ser, e é em muitas das vezes, só teoria, a prática é bem mais difícil. Contudo, algumas orientações podem facilitar o trabalho de pais que têm experiências com Deus e que desejam, de todo o coração, que seus filhos também tenham. A primeira delas é: respeite seus filhos como indivíduos, com direito a livre arbítrio e à liberdade para serem o que desejarem ser, mesmo que isso seja muito diferente do que vocês, pais, são, principalmente depois que crescerem e passarem da infância e da adolescência à maturidade. 
      Quem cria filhos sabe que até uma idade podemos aconselhá-los com facilidade, conversar com eles, mas depois isso fica difícil, e por um tempo será mesmo muito difícil. Só algum tempo depois, quando amadurecerem, é que voltarão a dar mais atenção às nossas palavras. Ma não há nada de errado nisso, no período que se preparam para fazer curso superior, que fazem graduações e pós-graduações em faculdades, que se colocam profissionalmente, que namoram, eles estão ocupados se definindo como seres autônomos. Nesse período temos que ter paciência e permitir que eles se decidam e se testem. 
      Os textos de Provérbios citados no início não procedem hoje em dia, mas isso não significa que não temos que usar de autoridade, e eis um termo mal compreendido. Autoridade no evangelho se faz com amor e com um caráter interior, quando isso existe, filhos nos acatam, às vezes só por olharmos para eles. Qualquer espécie de castigo físico que use de violência é no mínimo inútil, mesmo violência verbal também é, que às vezes pode humilhar e machucar mais que a vara. Contudo, fazer trocas, desautorizar atividades temporariamente como punição para erros insistentes, se feito com sabedoria, pode ser útil. 
      As pessoas nos respeitam pelo que somos, somos o que fazemos e é isso que é visto. Se é assim no meio profissional, na escola, na igreja, muito mais em nossos lares, onde nos despimos de máscaras e nos mostramos como somos de verdade. Nossos filhos nos conhecem muito bem, ainda que sejam pequenos, ainda que não falem nada, e eles nos imitam, simples assim. Se formos coerentes e verdadeiros eles também serão. Mas se alguém diz que fez tudo certo, até levou os filhos à igreja, mas ainda assim eles se tornaram pessoas muito diferentes, de duas uma, ou esse alguém está mentindo, ou não se conhece. 
      Muitos mentem insistentemente para si mesmos, no fundo sabem que vivem uma farsa, mas seria muito dolorido e trabalhoso para eles admitirem, teriam que se desconstruir para então construírem algo verdadeiro. Assim, fingem que são cristãos, que são maridos, que são pais, e os filhos que os veem fingirão que são filhos cristãos, funciona desse jeito. Por outro lado, tem gente que não se conhece, acha que é uma coisa quando não é, novamente os filhos se espelharão neles e serão o que eles são, ainda que seja algo aquém do que eles acham serem. Espelho útil é o limpo, que reflete a imagem original sem distorções.  
      Seres humanos podem ser orientados, precisam ser cuidados, devem ser amados, mas o que precisam, no final das contas, é serem eles mesmos. Quem são nossos filhos? Só saberemos se dermos a eles liberdade, liberdade se dá, no tempo certo e do jeito certo. Sim, temos a responsabilidade como pais de dar a eles nossas melhores referências, morais, intelectuais, materiais, mas sem medo de mudarmos de opinião, de nos arrependermos, de pedirmos perdão, de sermos honestos e humildes, tratando-os como iguais, não como inferiores. Quem são de fato nossos filhos e quem serão na eternidade só o Senhor sabe. 
      Se tivermos amor ficaremos satisfeitos de vê-los como Deus quer que eles sejam, aprenderemos com eles, mudaremos para melhor vendo seus exemplos, seremos felizes por termos cuidado de seres que Deus nos permitiu ter por perto por um tempo. Filhos criamos para o mundo, deixamos voar, não prendemos em gaiolas, e principalmente, como cristãos, lhes damos direito ao livre arbítrio religioso. Quando adultos, e quando digo adulto é próximo aos vinte anos, não precisam ser obrigados a nada, nem a irem a cultos! Mas estejamos em paz, se tivermos trabalhado direito, no final eles farão escolhas que nos darão orgulho. 

Esta é a 68ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021