18/04/22

Parábola dos vasos (78/90)

      “Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei.
Gênesis 12.1

      Como fazia todos os dias, a mulher levantou-se cedo, pegou seu vaso em forma de cilindro, caminhou até o centro da cidade, chegou ao poço e colheu água. Seria o suficiente para sua família passar o dia, ela sabia que no dia seguinte teria que fazer a mesma coisa, foi ensinada a fazer isso por sua mãe, que fez isso durante sua vida. O vaso cilíndrico que a mulher usava tinha sido passado a ela pela mãe, essa o tinha recebido também de sua mãe, a mulher não tinha ideia da idade do vaso, só o mantinha com muito cuidado, sabia que não poderia quebrá-lo. O vaso era uma tradição, todas as famílias na cidade tinham vasos semelhantes, o poço não podia ser usado sem que fosse com aquele tipo de vaso. 
      Um dia um viajante chegou à cidade, com sede ele perguntou onde poderia pegar água e as pessoas indicaram o poço. Quando ele se aproximou do poço a mulher lá estava, com seu vaso em forma de cilindro, sozinha colhendo água. Enquanto esperava ela terminar outras mulheres chegaram e formaram uma fila. Uma mulher cochichou, “o que faz um homem aqui no poço? a responsabilidade de colher água é de mulheres”, outra mulher respondeu, “ele é um estranho, deve estar esperando para que alguma mulher lhe dê agua”. Outra mulher cochichou, “que ele peça à sua mulher que venha aqui e pegue água para ele, o que colhemos mal dá para nós, quanto mais darmos a desconhecidos”.
      Quando a mulher acabou de colher água ela se afastou um pouco do poço, o homem, então, tirou de sua mochila um vaso, curiosa a mulher não foi embora, ficou olhando. Contudo, as outras mulheres se surpreenderam quando viram que o homem queria colher água, e mais quando viram que o vaso que ele tinha não era no formato cilíndrico, mas em forma de cubo. Nisso começaram a gritar, “não está certo, já não basta um homem estranho querer colher água em nossa fonte e ainda usando um vaso desses? vai ver nem foi passado a ele por seus pais, ele mesmo deve tê-lo feito, esse não é o costume no mundo, ele deve ser um ladrão, um adúltero que traiu a esposa, um endemoniado fugindo de seus crimes”. 
      Discretamente a mulher observou e foi embora, contudo, no meio do caminho, entre o poço e sua casa, incomodada deu meia volta e retornou. Chegando ao poço viu as mulheres colhendo água, mas o homem, cansado e sedento que estava, não teve forças para sair de lá, ficou rendido no chão, ele tinha viajado muito. Ela então se aproximou e de seu vaso deu água ao homem, com as forças recobradas ele começou a contar sobre suas viagens. “Sou comerciante, vendo e compro coisas, mas não faço isso só em minha cidade, visito outras cidades e levo coisas de um lugar para o outro, assim entrego novidades que aqueles que nunca saíram de suas cidades não conhecem, o trabalho é bom, mas cansativo”. 
      A mulher perguntou-lhe, “por que seu vaso é diferente?”, o homem respondeu, “é como os fazemos em minha cidade, nas cidades que conheci, em todas havia um poço, mas os vasos tinham formatos diferentes, alguns eram iguais aos nossos, outros eram em forma de pirâmide e outros em formatos bem complexos; também não eram só mulheres que colhiam água, em algumas cidades eram os homens e em outras, crianças, de ambos os sexos, faziam isso ainda que com vasos menores, adequados às suas forças”. A mulher, caindo em si, disse, “o que matou tua sede não foi o vaso, mas a água, que importa o vaso, seu formato ou mesmo quem colhe a água? contanto que a sede seja saciada?”. 
      A isso o homem respondeu, “está certa, mas não escandalize tuas amigas, elas nunca saíram desta cidade, acham que o costume aqui é o de todo mundo, quanto a mim tomarei mais cuidado, evitarei essa cidade, pelo menos enquanto o costume aqui for tão restrito”. O homem se levantou e partiu, quando saiu da cidade avisou os outros viajantes como ele, pediu-lhes que evitassem aquela cidade por enquanto, ele não tinha a intenção de ofender ninguém, nem de mudar costumes, apenas queria fazer seu trabalho. Qua cada cidade mantivesse sua tradição no tempo necessário, o mais importante é que os poços de água não secassem, afinal, o que importava eram as pessoas terem água limpa e fresca para beberem.

      O mundo físico é uma expressão artística de Deus, como um quadro realisticamente bem pintado não é a realidade, mas uma ótica belíssima dela. O plano material não é a realidade, ele é passageiro, a realidade é o plano espiritual, esse é eterno, o que temos na Terra são meros esboços, metáforas, do céu. Parábola é uma expressão artística literária do homem, é a descrição de coisas e fatos do mundo para explicar conceitos espirituais, quando ela é inspirada pelo Espírito Santo revela mistérios cada vez mais profundos à medida que refletimos nela. Na parábola inicial os vasos são as religiões, a água é o Espírito de Deus, as mulheres são os religiosos, o homem é aquele que foi além de sua cidade, de um vaso, de tradições humanas. 
      Religião é a mãe do preconceito. Veja como as mulheres interpretaram o estranho, equivocaram-se sobre o que não conheciam porque eram equivocadas sobre o que achavam conhecer, seus vasos, sua cidade, sua tradição. O problema principal de uma tradição não é ela ser diferente e se achar com um entendimento melhor de Deus, mas é o fato dela demonizar quem tem uma crença diferente. As mulheres chamaram o homem de ladrão, adúltero, endemoniado, por acaso não é assim que muitos cristãos veem os que têm uma tradição religiosa diferente da deles? A religião limita o amor e  acirra o ódio, usando como álibi a pretenção de ser a única representante de Deus e dona da verdade, é assim enquanto humana e não divina. 
      Ser bom em uma religião é uma escolha, mas é melhor quem respeita a livre escolha do outro. O ser humano e principalmente o cristão, não faz ideia de como Deus respeita as preferências religiosas dos homens, simplesmente porque Deus avalia pelo interior, não pela aparência, assim como considera os limites de fé de cada pessoa. A mulher tinha sido criada numa tradição, que valorizava mais o vaso que a água, mas bastou uma nova experiência para que caísse em si. Ela não mudou de tradição depois de receber do homem informações sobre o mundo, seguiu colhendo água em seu vaso, mas entendendo o que era mais importante. Deus não pede que alguém mude de religião, não a princípio, mas que o conheça com mais profundidade.
      Há outras cidades, outras pessoas, outros vasos, mas a água mais pura é sempre a mesma. Meus caros irmãos protestantes e evangélicos, a água não é Maomé, Buda, Krishna, Nossa Senhora, alguma entidade espiritual ou divindade, mas Jesus, ainda que muitos não saibam disso. Quando o Deus verdadeiro é invocado não há outro meio pelo qual alguém tenha sucesso nisso que não seja pela porta que é o Cristo, esse emana sua dádiva mais alta até o ser humano pelo Espírito Santo. Ocorre que muitos idolatram o vaso e seu formato, afinal é mais fácil crer em algo que se vê, que se toca, que pode ser guardado, que a água, que some dos olhos após ser bebida, que precisa ser colhida todos os dias, tão líquida, como é o Espírito de Deus.
      Os viajantes devem respeitar mesmo os que não querem viajar. A atitude de amor e humildade do viajante, ainda que soubesse mais, tivesse mais experiências, tivesse mais quantidade e qualidade de vida, é a que Deus espera dos maduros, dos que realmente seguem a Jesus e não ficam aprisionados a religiões. Tantos no mundo se acham “iluminados”, com mais conhecimentos sobre o mundo espiritual que os cristãos, mas se há alguma espécie de orgulho, de sentir-se melhor que os outros por se saber mais disso ou daquilo, então, de nada vale a iluminação. A mulher que caiu em si ganhou sabedoria semelhante a que tinha o viajante, não se tornou igual a ele, mas se tornou a melhor em sua cidade, candidata à viajante, ela foi iluminada. 
      Ser viajante tem sua recompensa, assim como seu preço. Por mais que o viajante se abrisse para novos conhecimentos algo continuava igual, algo que o colocava no mesmo nível das outras pessoas, mesmo daquelas que nunca saíram de suas cidades e que consideravam o mundo todo igual. O homem ainda precisava de água para matar sua sede, e ela não estava fora das cidades, assim ele deveria ter a humildade de entrar numa cidade, enfrentar os limites das tradições, interagir com as pessoas, então, ser saciado. Deus é a constante, religiões são as variáveis, a água não muda porque o formato do vaso muda, crescemos convivendo com as diferenças, todos precisamos de Deus, Deus irá conosco à eternidade, o resto fica no mundo.
      Não é fácil nos livrarmos de tradições, elas nos abrigam tanto quanto nos permitem agradar os que nos iniciaram nelas, mas muitos de nós, em algum momento, terão que se livrar delas para se aproximarem mais da verdade de Deus. Isso não é para todos, para muitos pode bastar o bom senso da mulher, entender a relevância da água sobre o vaso, ainda que continuasse usando o vaso e permanecendo em sua cidade. Talvez a decisão mais difícil que podemos tomar nesta vida seja lançar o vaso ao chão e quebrá-lo. Como beberemos água depois? Fazendo nós mesmos nossos próprios vasos, com o formato que acharmos melhor, às vezes em dias diferentes com formatos diferentes, mas sempre priorizando enchê-lo com a água mais pura. 

Esta é a 78ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

17/04/22

Parábola das casas (77/90)

      “Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens.
João 10.9

      Três homens viviam felizes na terra natal com um pai, era um lugar onde o clima era equilibrado, nem era quente demais, nem era frio demais. Um dia o pai lhes deu uma tarefa, irem até três terras distantes, lá deveriam trabalhar por algum tempo, conhecerem os habitantes e depois retornarem à casa paterna. O pai conhecia bem os filhos, assim como conhecia as terras para as quais os estava enviando, dessa forma escolheu um lugar diferente para cada um. O primeiro filho enviou a uma terra com clima quente, o terceiro filho enviou a uma terra com clima frio, essas terras eram mais próximas. Já o segundo filho enviou para uma terra com clima semelhante ao da terra natal, essa terra, contudo, era mais distante. 
      Algum tempo depois, dando o prazo que o pai orientou para que ficassem longe, os três filhos retornaram para a terra de origem. O primeiro filho, acostumado ao calor do lugar onde tinha passado os últimos tempos, entrou na primeira casa que achou na terra do pai, mas sentiu que ela era muito fria, depois entrou em outra e em outra, até achar uma casa mais quente. O terceiro filho, também acostumado ao clima do lugar onde tinha passado os últimos tempos, procurou uma casa mais fria, achou na primeira que entrou e nela ficou. Esses nem esperaram chegar à casa do pai, estranharam o clima de sua terra e só queriam uma casa, o mais rapidamente possível, com climas semelhantes aos das terras onde estiveram. 
      Dando o prazo o segundo filho também voltou, mas entrou na terra natal e caminhou até achar a casa do pai, abraçou o pai e logo foi trabalhar. Como os outros dois demoravam, o pai esperou, mas após aguardar um tempo perguntou ao segundo filho, “e teus irmãos, não vão retornar?”. O segundo filho respondeu, “se o Senhor autorizar vou procurar por eles, podem estar em algum perigo”, “vá”, respondeu o pai. Não demorou muito para que o segundo filho voltasse com os irmãos. O pai lhe perguntou, “já voltou?”, “sim, eles estavam perto, aqui em nossa terra, mas em outras casas”. Entristecido, o pai disse, “eu os enviei para aprenderem uma lição, contudo, vejo que a viagem fui inútil, não entenderam o principal”. 
      O primeiro e o terceiro filho responderam, “pai, as terras para as quais nos enviou eram muito diferentes desta aqui, nos acostumamos com o calor e o frio, por isso nos abrigamos nas primeiras casas que achamos com climas semelhantes”. O pai respondeu, “e ficaram dentro delas? se ao menos tivessem saído para trabalhar, ainda que depois retornassem a elas, poderiam ter usado melhor o tempo, o irmão de vocês voltou para a nossa casa e logo saiu para trabalhar”. Os filhos responderam, “mas o lugar para o qual o senhor o enviou tinha um clima melhor”, o pai respondeu, “eu o mandei para lá porque antes, quando ele estava aqui, trabalhava bastante, não ficava em casa, enquanto vocês só descansavam”.
      Os filhos responderam, “mas nós obedecemos o senhor, trabalhamos e voltamos”, o pai respondeu, “mas não para esta casa, o irmão de vocês foi para uma terra mais distante, esforçou-se mais para chegar lá e para voltar, ainda assim chegou antes de vocês, se pôs a trabalhar e achou forças para voltar e procurá-los; se ficassem tempo suficiente trabalhando fora das casas, teriam se lembrado do clima da terra que de fato é de vocês, mas ficaram presos às terras nas quais eram para viverem só temporariamente, não sentiram saudades da casa do pai, cuja temperatura é equilibrada, o lugar onde foram criados, assim, que voltem às casas nas quais estavam e fiquem, até que se lembrem quem são e qual é a terra de vocês”.

      Deus, nosso pai espiritual, nos conhece, sabe de nossas lutas, de nossos esforços, que muitas vezes nada têm a ver com prosperidade material ou com reconhecimento no mundo. Nosso maior trabalho é vencermos a nós mesmos, nossas fraquezas, nossas carências, para entendermos e praticarmos virtudes morais. Assim, o que o Senhor permite que aconteça conosco nesta vida, nos movimentos do mundo, nos jogos do universo, nos sistemas humanos, é o que podemos suportar para sermos melhores, para construirmos o homem interior melhor que levaremos à eternidade.
      Três homens diferentes, três provas distintas, todas autorizadas por um pai justo que conhece o passado, o presente e o futuro de cada um. O que é prova para um por ser quente, pode não ser prova para o outro, mas para esse outro a prova é o frio, que não é prova para o primeiro. Um outro homem, contudo, que já foi provado no quente e no frio, será provado não pela novidade da prova, mas pelo tempo. O segundo filho foi para uma terra com clima mais fácil de suportar, mas passou mais tempo indo e vindo, distante da posição onde já tinha estabelecido suas referências. 
      Se as provas do primeiro e do terceiro filho foram amadurecer experimentando coisas novas e diferentes, a do segundo filho foi manter o amadurecimento  mesmo com tudo igual. O prazer novo prova tanto quanto o velho tédio. As provas do primeiro e do terceiro filho foram externas, do mundo contra o homem à medida que esse põe em prática o que crê, mas a do terceiro filho foi interna, do homem contra ele mesmo, quando ele não terá mais novidades, mas ainda assim deverá manter-se fiel ao que crê e é. Quando tempo demais passa, mesmo que tudo esteja bem, podemos nos perder. 
      Depois de nascermos no mundo aprendemos do zero a nos adaptar a ele, para conseguirmos sobreviver dignamente no corpo físico, mas trouxemos conosco um espírito, essa é a referência de algo maior, do que realmente somos, de onde viemos e para onde voltaremos, a eternidade espiritual perto do pai. Ainda que existir fisicamente tome muito do nosso tempo aqui, nosso trabalho principal é espiritual, devemos suportar o mundo, sermos felizes nele, vencê-lo, mas não nos convencermos que somos parte dele, que ele é o melhor para nós, no mundo estamos de passagem. 
      A prova maior na parábola inicial não estava nas terras distantes, nas quais os três homens teriam que passar um tempo. Cada um de nós tem provas diferentes, e ninguém é melhor que ninguém pelo tipo de prova que passa. Mas a prova estava na volta à terra de origem, qual seria a reação de cada homem. Muitos ganham o mundo, mas se esquecem do céu, até procuram uma religião, mas mais adequada à visão que eles têm do que é melhor no mundo, assim escolhem uma casa, uma crença, e se prendem a ela, sem voltarem à casa do pai. A prova maior estava nas casas. 
      Não podemos evitar sermos enviados pela vida a lugares distantes, para exercermos tarefas na área profissional, para nos relacionarmos com pessoas diferentes e conhecermos coisas em tantas áreas, isso teremos que viver de um jeito ou de outro. Contudo, podemos evitar o pior no final, quando enfrentaremos a morte e a eternidade, para isso podemos nos preparar, pois sabemos que é inevitável. Que no final, depois de termos feito tudo e mantido o que conquistamos, possamos ter o amor que teve o segundo filho, que voltou para ajudar os dois irmãos, ele trabalhou e até o fim. 

Esta é a 77ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

16/04/22

Viva mais com menos (76/90)

      Para melhor entendimento desta reflexão, leia as duas reflexões anteriores. 

      “Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos lugar.
João 14.2

      Na ”Parábola das mochilas”, que também pode receber o nome de “O ciclo da vida”, são revelados mistérios profundos em seu final, durante o diálogo que o filho tem com o pai dentro da casa. Algumas perguntas são feitas. “Que trabalho é esse que o senhor faz, que precisa ficar tão longe de mim?”, sim, Deus de fato está muito longe de nós, ainda que pelo seu Espírito tenhamos acesso a ele, e esse é só uma emanação, não Deus em sua plenitude, dessa plenitude só faremos parte na eternidade. Mas não devemos nos revoltar, antes aceitarmos em humildade o propósito maior do Senhor.
      “O senhor nunca fica com a mãe?”, no mundo físico matéria e espírito se integram em nós como um só ser, mas são coisas diferentes que devem ser entendidas diferentemente. Por não entenderem o equilíbrio que isso requer, é que tantos se perdem nos extremos, seja no materialismo, seja nas superstições. Experimentar equilíbrio não é fácil, existir no mundo é conviver com uma angústia constante, que não pode ser curada, só administrada. Na simbologia da parábola, a mãe mora num lugar e o pai em outro, um lugar distante, quem faz a união de ambos é o filho. Equilibrar-nos é nossa vocação. 
      “Quem é o dono das estalagens?”, pode representar mais de um ser, escolha quem você preferir. Pode ser o “diabo”, um ser espiritual decaído irremediavelmente, mas pode ser um ser humano que desistiu de seguir para Deus e parou no meio do caminho. “O senhor não é dono de tudo?”, o velho da parábola também representa mais de um simbolismo, a princípio é Jesus, mas também podem ser seus co-herdeiros, seres humanos já aprovados nas provações iniciais, que não vivem mais só para si mesmos, que deixaram de ser filhos e passaram a ser pais, cuja missão é cuidar de outros, ainda filhos. 
      Todos podemos chegar à posição de velhos sábios, não necessariamente no corpo, mas no espírito, todos podemos amadurecer para ajudar os outros. “Fará isso para sempre?”, posições espirituais são definitivas? Ou o ser humano pode mudar, o viajante pode se tornar escravo, depois dono de escravos, então, arrependendo-se, voltar a ser um viajante, amadurecer, para tornar-se pai, cuidar de filhos, e finalmente achar descanso junto ao Altíssimo, o dono de tudo. Agora se mudanças podem ocorrer, não só no mundo, mas também na eternidade, isso fica para cada um crer conforme puder crer. 
      Podemos achar que quando confessamos o pecado no nome de Jesus somos transformados num passe de mágica, que isso faz desaparecer pecado e culpa. Mas não existe mágica na verdade, o trabalho para que a culpa se vá é nosso e realizado por obras, não só por fé. A culpa desaparece quando seu lugar dentro de nós é ocupado pelo desejo de não errarmos mais. Isso, contudo, é só o primeiro passo no processo de anular o pecado. Seguido a isso devemos dizer não quando formos tentados de novo pelo pecado, agindo diferentemente e realizando boas obras, é aí que somos aprovados e mudamos. 
      Qual o papel único de Jesus? Dar-nos uma posição espiritual acima de tudo, do homem, do pecado, do “diabo”, nisso temos libertação da carne e fortalecimento no espírito, que funciona como uma chavinha em nossos pensamentos e sentimentos. Nesse aspecto a coisa parece “mágica”, no sentido de ser algo sobrenatural, que não entendemos racionalmente, que muda nossa mente em um instante, para isso a fé é necessária. Mas essa experiência é só o primeiro passo, os sábios vigiarão e permanecerão nessa altíssima posição espiritual e terão forças para serem aprovados em suas obras no mundo. 
      A melhor qualidade de vida está na resignação que entende que a nossa passagem neste mundo nunca será totalmente satisfatória, nunca teremos tudo o que gostaríamos de ter, nunca seremos plenamente felizes. Nossa atividade profissional, que pode começar como um sonho, nos cansa, nosso casamento, que podemos ter procurado por tanto tempo e que começa como uma paixão poderosa, se transforma em amor, mas também nunca será perfeito. Nossos filhos não serão o que achamos melhor, ainda que nos deem orgulho, igrejas e pastores nos desapontarão, enfim, só Deus é perfeito. 
      Usando as figuras da ”Parábola das mochilas”, o “mantimento” que precisamos para passar pela vida com paz está numa “pequena mochila”, essa é leve. Mas o alimento deve ser aceito com humildade à medida que administramos nosso tempo diligentemente, para que não nos entediemos buscando satisfação nos “pratos das estalagens” que só trazem peso de culpa. No inferno um minuto parece mil anos, mas no céu se vive mil anos em um minuto, assim, o sábio viverá de tal maneira que sua passagem no mundo o canse o menos possível, para que parta para a eternidade do jeito e no tempo certo. 

Esta é a 76ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

15/04/22

Siga leve, Deus está perto (75/90)

      Para melhor entendimento desta reflexão, leia a reflexão anterior. 

      “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.
  Mateus 11.28-30
     
      Vamos entender melhor a “parábola das mochilas”, descrita na reflexão anterior. A mãe é a vida, o pai é Deus, os viajantes somos nós, o caminho é o mundo, o estalajadeiro é o mal, as mochilas pesadas são culpas. Temos um pai, mas ele é espiritual, por isso está longe e só o veremos de fato no final, quando passarmos do mundo para a eternidade. Essa é a interpretação de uma primeira camada da parábola, representa o conhecimento básico para que possamos ter uma vida de comunhão com Deus, isso é o que basta para iniciarmos nossas jornadas, focados no objetivo e em paz. 
      Viemos a este mundo com uma missão, percorrermos um caminho, para isso recebemos aptidões naturais, formação familiar, informação moral, intelectual, material, religiosa, suficientes para percorrermos o caminho. Esses mantimentos estão conosco o tempo todo quando iniciamos a caminhada como adultos. Já água e descanso, também necessários para a nossa jornada, devemos administrar à medida que caminhamos, não descansarmos demais e bebermos sempre água limpa e fresca do Espírito. Vida de oração séria e profunda é onde recebamos a água espiritual que nos vivifica. 
      Quando não nos satisfazemos com Deus e fugimos de nossa missão, nos sentimos vazios. Vazios não veremos alimento no que é mais correto, assim acharemos nas opções da desobediência pratos de comida mais saborosos que o alimento de sabedoria que há numa vida de vigilância moral. Mas esses prazeres são armadilhas para nos escravizar, por isso nos enchem de culpas, se fossem coisas de fato benignas não nos deixariam pesados. A culpa dificulta o caminho, pesa em nossas costas, porque nos faz levar algo que não precisamos levar, algo que não pertence à nossa chamada espiritual.  
      Nas primeiras vezes que o provamos, até achamos o pecado saboroso, interessante, mesmo uma saída para conseguirmos suportar a vida e seguirmos caminhando, contudo, com o tempo e em sua reincidência ele torna a vida insuportável. Podemos chegar a um ponto onde nos tornamos só escravos de vícios numa condição de morte. Estagnados no caminho não temos forças para voltar, muito menos para seguirmos em frente, perdemos a fé, as referências, nos esquecemos da mãe vida, e do pai, Deus. Quantas vezes trocamos o mais importante por um prato de comida, por um curto prazer?
      O mal, “diabo”, ou seja lá o que isso represente e use para nos impedir de seguirmos para Deus, é o mesmo, disfarçado com rostos diferentes, ainda que possua lojas diferentes vendendo produtos diferentes. Ele tem sempre o produto certo para tentar a cada indivíduo em cada momento de vida desse. Seu objetivo é um só, nos matar aos poucos, nos cansando, fisicamente, mentalmente, até que morramos moralmente. Mortos glorificamos o “diabo” em nós servindo-lhe de escravos. Nossa mente é o lugar onde ele pode ter inicialmente alguma honra, existência e guerra espiritual são mentais.
      A culpa é um peso. Como nos livramos dela? Largando-a, como uma mochila pesada que se tira das costas e se deixa no chão. Depois disso seguindo em frente com a vontade de fazer diferente e de não mais gerarmos culpas para carregarmos. Não, não é preciso sacrifício para sermos libertos de culpa, rituais, promessas, obedecermos complicados protocolos religiosos, assistirmos liturgias e passarmos por ritos de iniciação. Basta que tenhamos consciência dela, entendamos porque ela se instalou em nós, e depois a deixemos. Deixar é se levantar, seguir em frente e praticar a mudança. 
      Deus não é um ser superior que manda, dá-nos alguma provisão e deixa o resto conosco. Ele mandou Jesus como exemplo de vida e porta para sua espiritualidade mais alta. Pela porta obtemos perdão, que nos cura da culpa e nos dá a paz que nos fortalece para colocarmos em prática o que aprendemos com o exemplo do Cristo. Podemos achar o Senhor a cada passo que damos, se formos simples e humildes, acalmarmos nossas almas e buscarmos experiências profundas de oração pelo Espírito Santo. Não complique a culpa, deixe-a como um mochila pesada e siga leve. 
      Não temos ideia de quantas vezes e por quantas maneiras Deus esteve pertinho de nós, às vezes como um velho de barbas e cabelos longos e brancos, às vezes como um anjo, às vezes como um ser espiritual de luz invisível aos olhos físicos, mas às vezes como um amigo ou mesmo como um estranho, que só queria “fazer o bem sem importar a quem”. Deus está muito perto de nós, o tempo todo, aconselhando-nos, protegendo-nos, com muito amor, bem-aventurados os que não se escandalizarem com ele na eternidade, mas só reconhecerem um rosto amigo que sempre esteve próximo.

Esta é a 75ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

14/04/22

Parábola das mochilas (74/90)

       Nesta parte e nas duas próximas do estudo “Quem você será na eternidade?”, uma parábola original e sua interpretação.

      “Mesmo vós sabeis para onde vou e conheceis o caminho… disse-lhes Jesus, eu sou o caminho…” 
João 14.4, 6a

      Numa terra distante, há muito tempo atrás, uma mãe pede a um de seus filhos que viaje até um lugar. No destino está o pai, que por motivo de trabalho, mora longe da família. Para a viagem, a mãe dá ao filho mantimento na quantia adequada para a jornada e o guarda numa pequena mochila. O filho coloca a mochila nas costas, mas antes de partir a mãe lhe dá uma orientação, “tudo o que você precisa para sobreviver na viagem está na mochila, não pare em lugar algum para comer nada diferente, descanse se for preciso, mas não demais, e quanto à água, os rios no caminho lhe fornecerão”. 
      O filho caminha por um tempo, descansa, se alimenta com a comida que sua mãe lhe deu, mas após fazer isso algumas vezes sente-se entediado, para demais para descansar e não tem mais vontade de seguir, esquece-se da urgência da viajem. Com a ociosidade a descrença o domina, sente saudades da casa da mãe, desacredita que possa haver algo bom em seu destino final. Desanimado, a fome torna-se maior, mas como a viagem parece demorar não sente mais prazer na comida que a mãe lhe deu. O jovem viajante tem vontade de comer algo diferente, ao menos para preencher o vazio de sua alma. 
      Perdido em seu devaneio ele vê, à margem do caminho, uma estalagem. Desobedecendo a orientação da mãe ele entra na estalagem e pede para que lhe sirvam a melhor refeição que o lugar tem. Quando ele termina de comer, cai em si, lembra-se que não tem como pagar pela comida, e quando o dono da estalagem vem fazer a cobrança ele revela sua situação. Ele se surpreende, contudo, quando o dono diz que ele não precisa pagar, basta que lhe faça um favor, levar uma encomenda para o mesmo lugar que ele vai. Ele recebe a encomenda numa nova mochila e a põe nas costas, essa é grande e pesada.
      Revigorado ele anima-se e põe-se de novo a caminhar, ele diz a si mesmo, “agora vou fazer como minha mãe mandou, vou até o fim sem parar”. Contudo, a encomenda que lhe foi dada pesa, com o peso ele se cansa mais facilmente e precisa interromper a viagem mais vezes para descansar, com o descanso exagerado ele volta a ter saudades da casa da mãe. Ele reclama, “viagem inútil essa, vou para um lugar que nem conheço, por que meu pai está tão longe? Se me amasse estaria comigo, na casa de minha mãe, e eu nem precisaria caminhar tanto, trocar o certo pelo incerto, que tolice a minha”. 
      Novamente, perdendo muito tempo reclamando e imaginando, ele vê uma outra estalagem. Ele entra nela e faz a mesma coisa, pede a refeição mais cara, só quando termina de comer é que se lembra que não tem como pagar. Contudo, para sua surpresa, o dono dessa estalagem solicita a ele a mesma coisa que o outro dono pediu, que leve uma encomenda como pagamento pela refeição. Feliz por ter se livrado da dívida, ele aceita o encargo de levar a encomenda, também dentro de uma mochila, nem pergunta para quem deve entregá-la quando chegar ao destino, só quer se livrar da dívida e seguir.
      Com mais peso para levar, mais facilmente se cansa e torna a cair na armadilha de tentar se satisfazer com uma comida diferente. Dessa vez, contudo, ele entra em uma estalagem já com a certeza que não precisará pagar, que o dono vai lhe pedir o mesmo favor, levar uma encomenda. Ele pensa, “deve ser um costume nestas terras, para mim está ótimo, não tenho como pagar mesmo”. Mas essa terceira mochila é fatal, após andar só um pouco ele cai ao chão, exausto de levar tanto peso. Onde caiu ficou e prostrado não teve forças nem para voltar, nem para continuar, só quis ficar lá, quieto e sozinho.

      Meio morto, meio vivo, ele ainda tenta se alimentar com o mantimento que sua mãe havia lhe dado, mas não teve forças para nada, quando esse alimento acabou ele se resignou à morte, e ainda que estivesse às margens de um rio desfaleceu de sede. Num determinado momento, ouve uma voz, reunindo as poucas forças que tinha abre os olhos. Era um velho, de barbas e cabelos longos e brancos, mas com olhos vivos, faces rosadas e um sorriso iluminado. O velho o ajuda a se sentar, lhe dá água do rio, o alimenta e coloca na mochila que sua mãe tinha lhe dado algum mantimento.
      O velho diz ao viajante, “pode seguir viagem”, o jovem responde, “não posso, essas mochilas pesam demais”, o velho diz, “livre-se delas”, o viajante fala, “não posso, são pagamentos pelo que comi”, o velho responde, “venho atrás de você há algum tempo, passei nas estalagens e paguei tuas dívidas, você está livre desses pesos”. Contudo, o jovem torna a reclamar, “não tenho o que comer”, então diz o velho, “coloquei em tua pequena mochila alimento suficiente para você terminar a viagem, se seguir sem parar demais, não enjoará dele e chegará a seu destino a tempo”. 
      O viajante olha sua pequena mochila e há nela o mesmo mantimento que sua mãe havia lhe dado, contudo, não resiste à curiosidade de olhar as outras mochilas. Abre uma delas e se surpreende ao ver que há pedras nela, olha a segunda, a terceira, e vê a mesma coisa. O velho, já se afastando, avisa, “são armadilhas, o dono das estalagens dá pedras para os viajantes levarem, para que se cansem e desfaleçam, quando isso acontece ele vem, os prende e leva-os como escravos para trabalharem nas estalagens”. O jovem percebe, então, os donos das estalagens eram a mesma pessoa.

      Continuando a viagem, o jovem algumas vezes foi tentado a parar demais para descansar, a ter saudades da casa da mãe, a comer algo diferente, mas resistiu, levantou-se e seguiu em frente, ele enfim havia aprendido a lição. Chegando perto de seu destino já podia ver, lá longe, a casa de seu pai, esse estava à porta. Fazia muito tempo que ele não o via, nem se lembrava mais como era o rosto do pai. Contudo, ainda longe, o pai gritou, “venha meu filho, estava te esperando, demorou um pouco, mas você conseguiu chegar, estou muito feliz por isso, aproxime-se e conheça a tua parte na herança”. 
      A voz do pai lhe deu forças, assim ele caminhou os últimos metros correndo, contudo, quando chegou e viu o rosto do pai, ele o reconheceu, era o velho que o havia ajudado no caminho, que tinha pago suas dívidas. O jovem viajante disse então, “era você, não te reconheci”. O filho, então, entendeu, o pai não estava longe dele, mas caminhava secretamente com ele, bem perto, durante todo o caminho. O pai não era seu destino, mas o próprio caminho. Sua missão não era alcançar o destino, mas percorrer o caminho obedecendo as orientações que recebeu, aprendendo a viver bem com pouco. 
      O filho entrou na casa do pai e perguntou, “que trabalho é esse que o senhor faz, que precisa ficar tão longe de mim?”. O pai respondeu, “eu faço dois trabalhos, um é administrar os que trabalham aqui nas terras, e não pense que aqui não há trabalho para você fazer, mas aqui poderá trabalhar perto de mim, administrando tua herança. A viagem foi para isso, para te preparar para estar aqui. O segundo trabalho faço indo até à casa de sua mãe e acompanhando meus filhos até aqui, você tem muitos irmãos e eles também precisam fazer a viagem corretamente e chegarem aqui, o destino de todos”.
      O filho fez outra pergunta, “o senhor nunca fica com a mãe?”. O velho respondeu, “estivemos juntos por um tempo, gerando filhos, e estaremos juntos também no final, quando todos os filhos estiverem aqui, mas neste ínterim é necessário que estejamos separados, cada um cumprindo sua missão. Ela cria os filhos até chegarem à juventude, depois o caminho os amadurece, quando fazem suas jornadas sozinhos, finalmente estão perto de mim, mas ainda aprendendo. Quando estiverem prontos irão a novas terras, conhecerão mulheres e constituirão famílias, serão novos pais, eis o ciclo da vida”. 
      Mas uma terceira pergunta o filho ainda fez, “quem é o dono das estalagens?”. O pai respondeu, “foi um viajante que não quis chegar ao seu destino. No início era só um escravo de um outro dono de estalagens, mas com o tempo até o antigo dono escolheu chegar ao seu destino, partiu e deixou em seu lugar o escravo mais antigo. Trabalhando nas estalagens muitos, com o tempo, até acham terem encontrado um sentido na vida, mas lá eles são apenas escravos, sem direito de ir e vir, sem posses, só assistem jovens iludidos se satisfazendo com o prazer enganoso que se vende nas estalagens”. 
      O filho tornou a falar, “até o dono das estalagens foi jovem? ele parecia tão insidioso”. “Sim”, disse o pai, “todos começamos como jovens viajantes, inclusive eu, enviados à terra de um senhor”, “então, o senhor não é dono de tudo?”, perguntou o jovem, “não, só cuido de quem administra as terras para o dono de tudo, como eu existem outros”, disse o pai. O jovem tornou a falar, “fará isso sempre?”, “não”, respondeu o velho, “só até meus filhos chegarem aqui, minha missão não é cuidar de terras, mas de vidas, quando terminar eu e tua mãe moraremos na casa do dono de tudo, lá há descanso”. 

Esta é a 74ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

13/04/22

Nós seremos a água (73/90)

      Para melhor entendimento desta reflexão, leia as duas reflexões anteriores. 

      “O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós. Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis; porque eu vivo, e vós vivereis. Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós.
João 14.17-20

      Reflitamos mais um pouco sobre a “parábola das águas”. O viajante tentou beber a água diretamente da cachoeira, mas ela caia com muita força, quase o afogou, por isso usou a caneca, ainda que furada era o meio mais adequado para que ele levasse água à boca. No mundo somos seres divididos, parte de nós é matéria, parte de nós é espírito. Por que é assim, se na eternidade seremos espíritos puros, se esse é o estado onde seremos plenos? Por que apraz a Deus nos colocar no plano físico, ainda que seja por um curto espaço de tempo, num conflito interior insolúvel? Parece até que Deus nos quer fazer sofrer de propósito?
      Entretanto, qual o problema de sofrer? Não, não me refiro a sofrimentos desnecessários, estúpidos, que exaltam agressores, humilham oprimidos, que são consequências de preconceitos e injustiças sociais, contra esses devemos lutar e não aceitar de forma alguma. Me refiro ao sofrimento interior de todos, que existe por causa do nosso orgulho, do nosso medo, de nossa insistência em buscarmos prazer nas coisas materiais e erradas, que são erradas porque fazem mal aos outros e a nós mesmos, e na verdade as duas coisas sempre estão relacionadas, e que só nos prejudicarão espiritualmente, neste mundo e muito mais no outro. 
      Ninguém vence a si mesmo sem aprender a suportar o sofrimento. Isso não é fugir da dor, e nem aceitá-la, mas conviver com ela em paz e com humildade, para isso Jesus veio ao mundo, para ensinar-nos a administrar a dor do conflito entre matéria e espírito. Por isso a caneca furada, por isso não conseguimos viver o tempo todo em um êxtase espiritual, fazer é pôr a cabeça diretamente sob o jato de água, isso pode prejudicar nossa sanidade mental. Pedro, João e Tiago quiseram perpetuar um momento quando viram Jesus transfigurado com Moisés e Elias em Mateus 17.1-9, não entendiam que eram canecas furadas. 
      Na eternidade poderemos ser, não canecas, vasos ou qualquer recipiente para reter água, para conter unção, seremos mais que templos do Espírito, existiremos no Espírito, seremos a própria água, e por isso poderemos nos encher dela sem nos prejudicar. Aqui nos cabe acostumarmos-nos com ela o mais que pudermos, mas sabendo que no mundo água que sacia a sede também afoga, e eis aí uma metáfora de um mistério espiritual. Como algo bom pode fazer mal? Faz se exagerarmos na contemplação e nos esquecemos da realidade, o viajante não podia permanecer à beira do riacho, ele tinha que seguir viajem.
      Por melhor que fosse se saciar e se refrescar com a água do riacho, a missão do homem da parábola não era estar na água o tempo todo, a água devia ser usada de vez em quando, em poucas quantidades, sua missão principal era colocar os pés na terra e seguir. Nossa missão nesse mundo não é estarmos dentro de templos o todo tempo, termos experiências espirituais sempre, nossas mentes não suportam isso. Temos que trabalhar, nos alimentar, descansar e principalmente nos relacionarmos com as pessoas. É administrando essa vivência limitada que atravessamos o caminho, servindo em humildade e amor as outras pessoas.
      Jesus, como sempre, nos mostra como vivermos corretamente. Ainda que tivesse consciência de sua alta espiritualidade, de que, como ensina a tradição cristã, “fosse Deus”, ele não vivia como tal, mas como homem. Acreditem ou não, mesmo o Cristo era uma caneca pequena e furada e ele sabia disso, sim, Jesus homem também era limitado. Mas ele sabia viver com equilíbrio, de modo que interagisse com os homens, em amor, no ensino, no exemplo prático, e ainda assim tivesse muitos períodos solitários de oração e consagração. Ele sabia manter sua caneca cheia o máximo possível e prosseguir até seu difícil destino.

Esta é a 73ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

12/04/22

Uma caneca furada (72/90)

      Para melhor entendimento desta reflexão, leia a reflexão anterior. 

      “Porque Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós.” 
II Coríntios 4.6-7

      Segue a interpretação da “parábola das águas”. Neste mundo estamos num caminho a pé, não de carro, nossa evolução depende de nossas forças. Podemos até usar mecanismos artificiais para prosperarmos materialmente, mas só o que conquistarmos com nossas virtudes aliarão ao nosso homem interior crescimento moral. Quando iniciamos nossa caminhada recebemos dos que nos criaram um cantil, ele é a forca necessária para o início da jornada. Ele, contudo, dura só algum tempo, não é para sempre, quem quiser essa força inicial por mais tempo acabará sempre voltando ao início do seu caminho, perdendo tempo e não chegando ao destino. Se o viajante quisesse um cantil novo teria que voltar ao ponto de partida de sua viagem. 
      A parte mais importante de nossa caminhada fazemos sozinhos, descobrirmos por nós mesmos os meios para alcançarmos nosso destino. O cantil e a caneca estão furados? Mas é para ser dessa maneira, cantil têm data de validade, um dia devemos nos livrar dele, a caneca não tem, mas tem uso limitado. Nosso passado é um cantil furado, até nos ajuda por um tempo, mas em determinado momento perderá sua utilidade, porque ele é a história dos outros, não a nossa. Como indivíduos devemos construir nossa própria história. Nossa alma é uma caneca furada, ela pode e deve ser usada, não substituída, mas administrada. É nela que construímos nossa história, é ela que é enchida com a água que mata nossa sede, para que tenhamos forças para seguirmos.
      A água que recebemos inicialmente em nosso cantil nos ajuda no início, mas depois temos que descobrir onde está o rio e dele recebermos água para saciarmos nossa sede. O irónico da história é que quem idolatra o cantil não percebe que o rio está perto, margeando o caminho, assim quem se prende às tradições de família e de religião não percebe que isso é base para início, mas não saciará durante todo o caminho. O que nos sacia no caminho é uma experiência nova, viva e diária com Deus, o Espírito Santo é a água limpa e fresca que Deus nos dá à medida que caminhamos em sua vontade. Não é fácil acharmos esse rio, apesar dele estar perto da gente, é preciso a calma que abre os ouvidos espirituais e discerne o ruído das águas. 
      Não há vida sem oração, mas vida de oração é algo que se transforma. Cada vez que buscamos a Deus é diferente, e é assim para que nos esforcemos mais e cresçamos. O caminho se segue com trabalho, mas o trabalho agita nossa alma, que precisa ser acalmada para achar a água viva do Espírito que nos sacia, para que possamos continuar caminhando. Isso estabelece o conflito permanente entre corpo e espírito, que enfrentamos no mundo, para o qual devemos achar equilíbrio. Não devemos anular o corpo, nem iludir o espírito, ambos são necessários para que nosso destino seja alcançado. Além desse conflito temos outro desafio, usar uma caneca furada, isso é um exercício de humildade, eis um mistério que muitos não entendem. 
      Parece que seria bem mais fácil termos uma caneca grande e em perfeitas condições, nos esforçaríamos menos para fazer algo tão importante, saciarmos nossa sede e assim prosseguirmos mais rapidamente em nossa caminhada. Mas não é assim, por quê? A água é o alimento espiritual que saciando nosso espírito fortalece nosso emocional, nosso racional e nosso corpo físico, quando temos um encontro poderoso com Deus em oração somos plenamente fortalecidos. Não seria bom termos um encontro assim é termos forças para caminharmos por muito tempo, sem precisarmos orar novamente? Mas a caneca é furada, não retemos unção do Senhor por muito tempo, temos que enchê-la com a água do Espírito, pacientemente, todos os dias. 

Esta é a 72ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021