sábado, abril 23, 2016

Editora Vida Nova: Bíblia e literatura

O texto que segue é da Revista Teologia Brasileira.

__________#__________

Bíblia e literatura I

A relação entre a Bíblia e a literatura é muito discutida, tanto nos meios teológicos quanto nos literários. Gostaríamos de retomar essa complexa e difícil discussão, sem pretensões de esgotamento, muito menos de redução da Bíblia a mais um livro, entre tantos outros.

Procuraremos, pelo contrário, demonstrar que uma perspectiva literária e séria da Bíblia, ao invés de nivelá-la a tudo aquilo que já se escreveu nesse mundo, realça ainda mais a sua singularidade. Para seguirmos essa linha de raciocínio, é preciso, em primeiro lugar, admitir sem medo que a Bíblia é, queiramos ou não, um livro . E como tal, ela faz parte de uma longa e complexa tradição cultural e literária. Mas não é só isso que torna a Bíblia parte do que costumamos chamar de literatura. Nem todo livro que nos é oferecido, principalmente hoje, pode ser considerado propriamente literário. Como distinguir? Certamente não é tarefa fácil, exigindo alguma experiência com o trato de livros. Mas o empreendimento é tão compensador que pode, inclusive, levar alguém a se dar conta da notoriedade desse livro específico chamado Bíblia.

Foi precisamente isso que aconteceu com o conhecido escritor e catedrático em literatura de Oxford, C.S. Lewis, que costumava dizer que preferia os livros antigos, ou clássicos, que não podem ser limitados cronologicamente porque , antes de tudo, eles foram testados pelo tempo, prova nada fácil de passar (para maiores detalhes a respeito dessa história, leia a autobiografia de Lewis, Surpreendido pela Alegria , da Editora Mundo Cristão). E, já que ele não tinha como ler os livros do futuro, dizia, dava um crédito a mais aos clássicos. Então, sua fórmula era ler dois clássicos para cada livro recente. Sua filosofia era incentivar a leitura dos livros de autores de outras épocas porque eles desenvolvem a capacidade de comunicação, pondo-nos em contato com todo o mundo que o leu antes de nós, ampliando, assim a nossa restrita visão de mundo. Dificilmente poderíamos alcançar esses conhecimentos pela experiência.

Se considerarmos, nesse contexto, que a Bíblia é um dos livros mais antigos de toda a humanidade, teríamos que lê-la numa proporção ainda muito maior do que lemos os livros antigos mais "ordinários". Não é para menos que esse livro unifica nações de raízes culturais diversas, sendo muitas vezes usado como instância de autoridade máxima para a tomada de decisões pessoais e coletivas. Trata-se de um dos livros mais traduzidos do mundo, que se tornou a razão para a alfabetizações de nações inteiras.

Sem desconsiderar as diferenças de religião, credo, cultura e gerações que já deram motivo a guerras e injustiças na história, a Bíblia, pelo contrário, estabelece um campo comum propício à comunicação no meio destas diferenças. Poderíamos citar inúmeras campanhas internacionais de distribuição de Bíblias e movimentos missionários de todos os tempos que apontam para isso. Os pais da Igreja e seus esforços para expandir o Cristianismo nos seus primórdios e os Reformadores são evidências históricas disso. Há livros sagrados, cuja tradução para outras línguas é inclusive proibida, dificultando esta comunicabilidade e transculturalidade.

A Bíblia absolutamente não se trata de um livro qualquer . Ela é, nada mais nada menos, do que um dos livros mais amplamente distribuídos e lidos de todos os tempos. Um verdadeiro best seller internacional, cujas primeiras cinco partes, o Pentateuco, já têm aproximadamente 3450 anos de idade, o que vale mais do que qualquer Prêmio Nobel em literatura ou selo de qualidade.
Uma das razões para o conhecimento amplo da Bíblia é que ela continua sendo um best-seller . Isso, apesar de ter sido um dos livros mais perseguidos, queimados e censurados de todo o mundo. A Bíblia foi traduzida em inúmeras línguas, inclusive de tribos situadas nos mais remotos lugares do mundo. Foi assim que a Bíblia marcou profundamente a biografia de pessoas mais ou menos conhecidas como Gandhi, Martin Luther King e Watchman Nee.

Basta consultar uma enciclopédia comum para encontrarmos diversas referências à Bíblia. Nada como um bom dicionário bíblico ou uma enciclopédia de teologia para se ter uma idéia da quantidade de expressões usadas para se referir a esse livro: Escrituras Sagradas, Palavra de Deus, Lei Divina, Livro Sagrado, e isto, somente no português.

Quem tem o prazer de conhecê-la mais de perto, o que é sempre preferível ao recurso apressado a qualquer enciclopédia, notará que se trata, na verdade, não de um livro ordinário, mas de um grande conjunto de livros. Não é para menos que a palavra Bíblia, ta biblia (os livros) seja o plural do grego biblion (livro). Quem se aventura a dar uma segunda folhada na Bíblia constatará que se trata de uma verdadeira "biblioteca", com uma extraordinária riqueza, não apenas literária, mas histórica, geográfica e principalmente de sabedoria de vida e conhecimento das coisas de Deus.

Essa diversidade e riqueza de partes que compõem a Bíblia, muitas vezes assustam os leitores, mesmo aqueles habituados à leitura. Mas, na verdade, trata-se basicamente do Antigo Testamento, com um total de trinta e nove livros, e do Novo Testamento, com vinte e sete. São aproximadamente trinta escritores, das mais diversas épocas e lugares envolvidos. O extraordinário é que isso não pôs a perder a sua coerência essencial para além de toda a diversidade – ou precisamente devido a ela.
Essa unidade dentro da diversidade pode ser mais bem compreendida se considerarmos que a palavra "testamento" nada mais significa do que "pacto" ou aliança, o da Lei Antiga de Moisés – que viveu cerca de quatrocentos anos antes do cerco de Tróia e trezentos anos antes dos filósofos antigos Pitágoras, Tales de Mileto e Confúcio – e o da nova aliança que se cumpriu em Cristo. Ou seja, a diversidade não impede a unidade, que aponta para uma mensagem ( kerygma ) única, que transcende todas as diferenças autorais, culturais e temporais: a encarnação e a possibilidade de salvação através dela.

Além da diversidade de autores, temos na Bíblia uma incrível variedade de gêneros literários. Desde a poesia dos Salmos e Provérbios, até ao espírito épico e profético do livro do Apocalipse. Temos aí também as profecias do Antigo Testamento, que se cumprem no Novo Testamento, como bem destacou Josh McDowell no clássico Mais que um Carpinteiro .

Por mais fascinante que seja o assunto, não entraremos aqui no mérito das polêmicas em torno da origem específica de cada um dos autores humanos desses escritos. Temos já aí uma ampla bibliografia especializada de excelente qualidade sobre o assunto. Restringimo-nos aqui à sua relação específica com a literatura.

Para tanto, é necessário primeiramente considerar um outro assunto, quem sabe o principal para entendermos a distinção da Bíblia entre tantos outros livros – até mesmo entre alguns outros escritos considerados "sagrados". Trata-se da questão da autoria ou "inspiração" que está para além de todos os autores humanos e que pode explicar a sua incrível unicidade de sentido para além da diversidade de escritores de diferentes épocas. No próximo artigo, abordaremos a questão da inspiração divina e como ela se relaciona com a identidade literária da Bíblia.

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=6

__________#__________

Bíblia e literatura II

Um dos pontos mais controversos no debate sobre a relação entre a Bíblia e a literatura é a questão da autoria. Tanto judeus – no caso da Torah – quanto cristãos alegam que a Bíblia tenha sido inspirada por Deus, alegação esta que o próprio texto sagrado afirma e corrobora quando fala de si mesmo. Os cristãos são ainda mais ousados do que os judeus nesse ponto quando afirmam que uma das provas de que a Bíblia é inspirada por Deus é o fato de que ela gira toda em torno de um personagem central – Jesus Cristo é tido como a chave que unifica o Antigo Testamento (AT) e o Novo Testamento (NT) para além das suas diferenças de conteúdo e de imagem de Deus. Ele é o cumprimento vivo das profecias do AT, em que é mais conhecido como Messias . Alguns judeus compreenderam tão bem esse ponto do AT que continuam esperando pelo Prometido até os dias de hoje. Essa é a diferença básica entre cristãos e judeus. Os primeiros reconhecem Jesus Cristo como sendo quem ele alegava ser, o Filho de Deus, sua encarnação, para escândalo de grande parte dos judeus.

O fato de a Bíblia ter sido escrita ao longo de centenas de anos por diversas mãos – a maioria delas anônimas – com diferentes backgrounds profissionais e geográficos é considerado motivo para as suspeitas daqueles que só crêem no que tocam ou no que leva o carimbo da Ciência. A Bíblia foi escrita por 40 pessoas, ao longo de 16 séculos, embora até nisso haja controvérsias, uma vez que alguns livros são de autoria e datação incerta.

Usualmente, pessoas assim também resistem ao novo paradigma da incerteza em toda a ciência e/ou desconfiam da validade da literatura oral e do senso-comum em geral. Querem muitas vezes com isso evitar se misturar com o povo e seu conhecimento de "segundo calão".

Já aqueles que se dão ao trabalho de uma leitura mais atenta da Bíblia notarão a estranha coerência interna que torna esse livro tão misterioso, fascinante e poderoso. Muitas vezes essa coesão não pode ser vista logo na primeira leitura, o que, por sua vez, faz com que até aqueles que dificilmente leriam um livro mais de uma vez, não resistam a voltar a abri-lo. E quem decide estudá-lo para valer, de maneira, por assim dizer, "científica", notará que nem tudo são mistérios em torno desse livro. Não raro, estes também acabam por se render à forte e assustadora intuição de que ela seja fruto de uma só mente: Deus.

É claro que não temos pretensão alguma aqui de querer identificar o estilo literário de Deus, como se pode identificar o de um pintor ou de um músico, o que não deixa de ser um excelente exercício. Se até Tomás de Aquino se dizia incapaz de "esgotar sequer a essência de uma mosca", uma das menores criaturas da natureza, imagine a de Deus! A face divina e a maneira de Deus agir são coisas ao mesmo tempo tão distantes e tão próximas de nós que vivem escapando por entre os dedos das mãos.

O sentimento que se tem diante do estilo de Deus é muito parecido com o que nos invade no trabalho de crítica literária quando se quer conhecer mais a fundo determinado autor "real" ou determinada língua, particularmente quando se trata de poesia ou literatura imaginativa em geral (mitos, contos de fada, provérbios, etc.) Esse sentimento de maior ou menor familiaridade ou estranhamento explica inclusive porque não é preciso ser especialista para desenvolver um certa intimidade com esse inexaurível Autor. Nós aprendemos a conhecê-lO como conhecemos certas pessoas do nosso cotidiano: pela postura, tom de voz, olhar, etc. – e, no caso, por meio da literatura e da ficção.
Ou seja, para entendermos o jeito de ser de alguém, o pressuposto necessário é a convivência e a linguagem comum , o nível de interlocução , isto é, de comunicação , que temos com ela. Na literatura, à semelhança do que acontece quando nos vemos deparados com a Bíblia, dá-se algo parecido. De tanto viver com certos autores e estilos, nós conseguimos, com grande chance de acerto, reconhecer ou discernir certas atitudes que são típicas a eles, e outras que destoam definitivamente.
No entanto, apesar de sermos capazes de reconhecer o estilo dos personagens criados por um autor e, por reflexo também, o do próprio autor, que se espelha de forma mais ou menos nítida em todos os personagens, não devemos recair no reducionismo, achando que podemos "classificá-los" de alguma forma predeterminada. Pois todo personagem é, antes de ser produto da imaginação humana, proveniente em última instância do Criador que a todos "inventou" imprimindo-lhes a Sua Imagem. Essa pode ser uma boa explicação para o poder de influência desse livro tão sui generis , a Bíblia, para além dos seus mistérios. E se nós já cremos na Bíblia como Palavra inspirada pelo próprio Deus, quanto mais não a estaremos apreciando quando a reconhecermos, além disso, também como excelente obra literária que é e que nos remete a outras obras muito saudáveis como, por exemplo, As Crônicas de Nárnia e outros tantos clássicos da literatura mundial.

É claro que não podemos reduzir a Bíblia à literatura ou submete-la às rígidas classificações de gênero, mesmo porque ela não cabe em nenhum deles, ao mesmo tempo em que cabe em todos eles. Mas acreditamos ter com essa aproximação entre a literatura e o estudo da Bíblia, ter dado uma vaga noção da riqueza desse diálogo e do estilo surpreendente que se encontra por trás de sua infinidade de autores, que diz respeito a toda a humanidade. Ou pelo menos, esperamos ter contribuído para melhorar a imagem que fazemos dAquele de Quem somos imagem.

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=2

Nenhum comentário:

Postar um comentário