quarta-feira, outubro 30, 2019

Dor insolúvel de viver

      “Senhor, não me repreendas na tua ira, nem me castigues no teu furor. Tem misericórdia de mim, Senhor, porque sou fraco; sara-me, Senhor, porque os meus ossos estão perturbados. Até a minha alma está perturbada; mas tu, Senhor, até quando? Volta-te, Senhor, livra a minha alma; salva-me por tua benignidade. Porque na morte não há lembrança de ti; no sepulcro quem te louvará? Já estou cansado do meu gemido, toda a noite faço nadar a minha cama; molho o meu leito com as minhas lágrimas, já os meus olhos estão consumidos pela mágoa, e têm-se envelhecido por causa de todos os meus inimigos. Apartai-vos de mim todos os que praticais a iniqüidade; porque o Senhor já ouviu a voz do meu pranto. O Senhor já ouviu a minha súplica; o Senhor aceitará a minha oração. Envergonhem-se e perturbem-se todos os meus inimigos; tornem atrás e envergonhem-se num momento.
Salmos 6

      Por favor, se possível leia esta reflexão até o fim, penso que assim poderá entendê-la melhor. 

      Não culpo os homens, não mais, nunca culpei Deus, nunca, uma das poucas virtudes que tenho, também não me culpo, sei que assim como eu tenho motivos para sofrer outros tiveram motivos para me fazer sofrer, e vice-e-vesa, eu entendi que ninguém tem culpa do que ocorre de ruim neste mundo, a coisa simplesmente é assim e pronto. Contudo, sinto dor, a dor insolúvel de viver, a dor infinita, minha dor, meu direito pessoal e intransferível. Depois que o nosso pecado é confessado e o perdão é assumido, depois que os homens são perdoados e entendidos, depois que Deus é buscado e se aceita o que ele pode e não pode fazer, e não pode não por limitação de poder, mas por coerência cósmica, depois de tudo isso, a dor ainda resta, pequena, profunda, mas incisiva, brilhante como a ponta de uma faca de prata virgem, como um segredo íntimo. 
      Desse jeito devemos continuar com a dor, guardando-a como um segredo, ninguém tem culpa dela existir, ninguém também precisa ser importunado com ela, que ela permanece assim, encravada em nossa carne, isso, todavia, não é fácil. Quando ela fala alto nós cobramos atenção de alguém, a tristeza sempre quer companhia, contudo, todos estão ocupados com suas próprias dores, não querem dividir os corações com dores alheias, dessa forma, ainda, que manifestemos um grito sufocado para chamar a atenção, logo nos calamos, engolimos o choro e nos retiramos com nossos dores, envergonhados, humilhados, e de nenhuma forma compreendidos por alguém.
      Muitos, todavia, conseguem se convencer que a dor tem cura, assim buscam a religião, eu disse a religião, não Deus, ainda que pensem estarem buscando Deus, e mesmo que sejam ouvidos por um Deus cheio de amor. Deus é só misericórdia, ainda que as pessoas não o conheçam, ainda que digam dele coisas que ele não é, ainda que peçam a ele coisas que ele não pode dar, ainda que o importunem anos a fio com assuntos menores, baixos, inúteis, ainda assim ele pacientemente ouve e dá algumas coisas, as necessárias para que as pessoas não desfaleçam de vez. As pessoas não entendem que recebem porque insistem demais, e que pai nega algo a filhos insistentes, ainda que ele saiba que são coisas que não resolverão de fato o problema? 
      Por isso Deus levanta pregadores nos púlpitos, que digam às pessoas não o que elas precisam ouvir, mas o que elas querem ouvir, por isso Deus dá doces e guloseimas ainda que estraguem os dentes, por isso Deus trata como crianças a velhos que já têm idade suficiente para viverem como adultos. Ah se não fosse assim, há se Deus nos tratasse como nos precisamos, ou pior, como nos merecemos, ah se Deus pai nos tratasse como nos tratam alguns pais, não com mimos, mas com a realidade nua e crua. Por isso Deus é incognoscível, ainda que tantos jurem que o conheçam bem, que o provam bastante, a maioria prova da misericórdia, não da real essência divina, mas o que importa para nós, seres humanos? A misericórdia de Deus nos basta para nos manter vivos neste mundo à medida que empurramos para lá e para cá nossas dores. 

      As pessoas buscam nos púlpitos palavras de incentivo, de superação, de vitória, aquelas que elas estão acostumadas a ler nos Salmos, mas elas não entendem que para Davi ter concluído um salmo com uma palavra assim muita dor ele teve que sentir, muita solidão, muita injustiça, existiram muitos assuntos sem solução com os quais ele simplesmente teve que aprender a conviver. A mesma coisa com os profetas, é bom ler que Elias foi vitorioso sobre os profetas de Baal, mas e todos os anos que ele passou como marginal, fugindo, dependente de uma viúva e de um corvo? A mesma coisa com Paulo e seu espinho na carne. O início dessa reflexão foi o relato de um processo que muitos passam, mas que pouco hoje em dia admitem, já querem ir diretamente para o final feliz da história, sem compartilhar toda a dor que existiu durante todos os outros capítulos. 
      Mas será que alguma história tem final feliz de fato? Eu concluí que não, e quem pensa diferentemente acha que a vida é filme, romance, não a verdade, nem os personagens bíblicos tiveram finais felizes, muitos leem e leem a Bíblia e não percebem isso, buscam nos textos sagrados o que eles nunca disseram. O único final feliz está no perdão espiritual que Jesus nos dá, e isso foi conquistado com o pior dos finais de história de todos os tempos, a tortura e a morte de cruz do homem mais justo de todos, o desprezo da humanidade, principalmente de um povo que tanto deve a Deus, a começar por simplesmente ser um povo, o povo judeu, ao filho desse Deus, que só fez o que fez para salvar esse povo. 
      Existir neste mundo é carregar um fardo que é só a dor insolúvel de viver, enquanto isso nos apaixonamos, pela garota, pelo garoto, pela música, por uma profissão, pelos filhos, pela igreja, por nós mesmos, por um cachorro, por uma taça de bebida, por um prato de comida, por um carro, pela Bíblia, pela religião, pela literatura, por um autor, por um compositor, por um ator, por um diretor, por um amigo, pela natureza, pelas manhãs, pelos entardeceres, pelas noites, pelo sol, pela lua, pelas estrelas, pela morte, por Deus. Eu cheguei ao nível final do jogo da vida, sou apaixonado por Deus, e isso é maior que tudo, é melhor que tudo, a dor ainda existe, e sempre existirá. 
      Contudo, olhar para o Deus verdadeiro, sem os filtros da religião, do cristianismo, dos loucos que buscam a Deus mas de fato não o querem, querem aquilo que querem que Deus seja, assim querem ídolos, não Deus, olhar para a luz pura e altíssima do Senhor me dá forças. Não são forças para fazer milagres, para mover uma montanha daqui para lá, para ressuscitar mortos, mas forças para acordar de manhã, respirar fundo e não me entregar às trevas, o que são as trevas? Trevas é a loucura, os extremos, os dois extremos, tanto dos que odeiam Deus quanto dos que o idolatram. Deus não quer se idolatrado, ele não precisa disso, idolatrar Deus é prendê-lo numa estátua, seja de gesso ou de ideologias, Deus é livre e quer nos fazer livres, ser livre é seguir com o fardo da dor, sem negar o fardo, sem buscar um remédio impossível para ele, mas continuar caminhando com ele, rumo a Deus. 

José Osório de Souza, outubro de 2019

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