terça-feira, abril 26, 2022

Quem será Deus na eternidade? (86/90)

      “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.” 
João 4.24

      Vou iniciar com uma provocação: outro nome para esta reflexão seria “Mãe de amor”. Mas acalmem-se, evangélicos e protestantes, este texto não é uma apologia sobre colocar um ser, mesmo a mãe física de Jesus, em um nível espiritual semelhante (ou superior) ao de Deus. Por outro lado ele também não é uma crítica aos católicos e outros que aliam poderes especiais a Maria e “santos”, aliás, para entendermos melhor o que esses pensam sobre isso seria necessário um estudo profundo, que talvez escandalizasse muitos evangélicos e protestantes. Vamos refletir sobre a tradição que vê Deus, principalmente no cristianismo, como um ser masculino. Será que é assim, ou será que é necessário que seja assim? 
      O patriarcalismo predominou no mundo por séculos, em alguns países ainda predomina, no Brasil ainda existem fortes influências dele. Isso é parte do machismo que coloca o homem superior à mulher, que o vê como alguém com mais direitos e capacidades para dirigir sociedade e família. Nos tempos bíblicos isso até tinha certa legitimidade, naquele momento histórico a mão de obra humana era a força motriz da sociedade, tanto para produzir bens de subsistência, quanto para manter força militar, esse, um elemento importante na economia, nações cresciam em grande parte guerreando. Assim, o homem, fisicamente mais dotado, fazia o trabalho físico e externo, enquanto a mulher ficava em casa, cuidando do lar e criando filhos. 
      Uma cultura que dava esse valor ao homem não podia deixar de interpretar seu Deus como uma potência, ainda que espiritual, masculina, e mais que um homem, velho, para demonstrar não só força e autoridade como também sabedoria. Isso não significa que não havia religiões que relacionavam o divino com deusas, elas estavam presentes nas mitologias greco-romana, na egípcia, nas do oriente médio, nas africanas, nas europeias etc, e em algumas eram não só coadjuvantes, mas protagonistas. Em algumas vertentes da bruxaria, como a Wicca, as mulheres têm importância não só como sacerdotisas, mas sua deidade principal é feminina, sem falar em tantas entidades do afroespiritismo que são femininas.
      Foi justamente para manter essa tradição, que tanto agrada a pagãos, que o catolicismo, em sua origem mais política que religiosa, empoderou Maria para substituir na cabeça de muitos a deusa-mãe. O evangelho de Jesus ensinou um Deus espiritual, que o é pelas qualidades morais, que conduz o homem, não para vencer guerras físicas, mas interiores, que vencem a violência, a injustiça e o adultério, com amor, justiça e santidade. Um Deus espiritual não precisa ser “macho”, no sentido mais bruto do termo, ao contrário, é pacífico, ainda que poderoso. Na eternidade, onde e quando julgará os povos, Deus não prevalecerá pela força, mas por sua luz espiritual mais clara e alta, que vence pela virtude moral. 
      Na eternidade os vencidos o serão não por terem sido submetidos fisicamente, mas por serem rebeldes, se afastarem da luz de Deus, não se deixarem ser atraídos pelo amor do Altíssimo. Deus não afasta, são os seres humanos que fogem dele, Deus não obriga, são os homens que não o querem. O verdadeiro Deus espiritual não é homem, nem velho, ainda que a imagem mais humana que possamos ter dele seja a de Jesus homem, maduro, mas não velho, masculino no corpo, mas abrindo mão disso, vivendo só e satisfeito, sem praticar vida sexual, tratando todos com igualdade ainda que respeitando as diferenças. Mesmo hoje, quase dois mil anos depois, não entendemos todos os mistérios que Deus revelou no Cristo encarnado.
      Se analisarmos os conceitos feminino e masculino, tentando entender suas diferenças afetivas, e não capacidades intelectuais e morais de homem e mulher, que são as mesmas, e também não levando em conta características físicas originais, mas essência interior que nasce com o indivíduo e não é escolha dele, veremos que Deus tem os dois sexos em si, é homem e é mulher e ao mesmo tempo, assim é pai e é mãe. Contudo, podemos até dizer que à medida que a humanidade evolui, Deus se torna mais mãe que pai, diz-se que o pai cria para o mundo e a mãe cria para si. Pelo evangelho vemos um Deus recebendo de volta filhos que estavam perdidos e retornaram ao lar, se o masculino deixa partir é o feminino que espera em casa.
      Na vida dos seres humanos em família é preciso que um cuidado feminino, que pode ser exercido tanto pela mãe quanto pelo pai, ocorra na infância e na adolescência. Já o cuidado masculino, que também pode ser exercido por pai ou por mãe, prepara o jovem para ser independente no mundo, ter vida profissional, constituir família. Sei que esse assunto é polêmico, muitos cristãos ainda teimam em defender, ainda que só na teoria, a binariedade sexual da tradição judaica-cristã, enquanto o mundo abre demais para liberdade e não faz separação entre sexualidade verdadeira, seja ela qual for, e mera promiscuidade. Isso pode deixar crianças e adolescentes perdidos. São os extremos sempre fazendo estragos, mais prendendo que soltando.
      Não é fácil, mas é importante separarmos os conceitos masculino e feminino de sexo, a parte interior da exterior do ser humano, entender a essência afetiva e mesmo espiritual que existem nesses conceitos, sem entendermos isso sempre confundiremos as coisas. Espíritos não possuem sexo. Mas se na família primeiro vem a criação feminina e depois a masculina, com Deus e a humanidade parece acontecer o contrário, o homem antigo vivia mais para o mundo, o moderno passou a viver mais para si mesmo, isso requer uma presença mais feminina de Deus. No mundo atual, onde a ciência oferece meios para substituir mão de obra humana por máquinas, o ser humano pode ficar mais dentro de casa, mesmo que seja para trabalhar.
      Isso não é para todos, ainda existe muita injustiça social e desnível econômico, mas é uma tendência e realidade para os que podem se preparar melhor para a vida profissional. Além do diferencial na produção de meios de subsistência, que livrou o ser humano do trabalho braçal mais duro e deu a homem e mulher as mesmas possibilidades, outra tendência é o fato da civilização entender que pode crescer sem fazer guerras, assim o inimigo não é mais o outro ser humano, o inimigo do ser humano é ele próprio. Isso também não está acontecendo para a maioria rapidamente, o mundo ainda alimenta e cria conflitos o tempo todo, mas é a tendência. Penso que tudo isso conspira para que o ser humano interaja com a parte feminina de Deus. 
      Povos orientais têm uma experiência maior com o lado feminino do divino e há mais tempo, à medida que aliam alta espiritualidade com uma vida solitária de retiro para evolução pessoal, para negação dos prazeres do corpo, para uma viagem para dentro do indivíduo, abrindo mão da competitividade que a vida social incentiva. Um Deus mais masculino está ligado justamente à competitividade, principalmente em se tratando de ganhar uma competição material com elementos físicos num mundo material. Contudo, o evangelho ensina justamente o oposto, a perder para ganhar, a morrer para viver, a dar a outra face diante da injustiça, a valorizar o espírito, mais que o corpo físico, isso é uma visão espiritual feminina. 
      Muitos cristãos não vão aceitar isso, principalmente pentecostais, mas o cristianismo precisa se espiritualizar mais, deixar os rudimentos da tradição cristã, libertar-se do materialismo e dos antropomorfismos que veem o plano espiritual com formatos do plano físico, para de fato conhecer o mundo espiritual. Isso é possível, ainda no mundo, com oração que dá liberdade ao Espírito Santo. Quem será Deus na eternidade? Com quem seremos confrontados quando nosso corpo físico parar de funcionar e nosso espírito estiver livre? Será com um velho de barbas e cabelos longos e brancos num trono, será com a entidade que nossa religião nos ensinou ser o divino eterno, ou será com um ser espiritual puro de luz? 

Esta é a 86ª parte da reflexão
“Quem você será na eternidade?”
dividida em 90 partes, para melhor
entendimento leia toda a reflexão.

José Osório de Souza, março de 2021

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