domingo, maio 19, 2019

Três justos

      “Filho do homem, quando uma terra pecar contra mim, se rebelando gravemente, então estenderei a minha mão contra ela, e lhe quebrarei o sustento do pão, e enviarei contra ela fome, e cortarei dela homens e animais. Ainda que estivessem no meio dela estes três homens, Noé, Daniel e Jó, eles pela sua justiça livrariam apenas as suas almas, diz o Senhor Deus.

      Se eu fizer passar pela terra as feras selvagens, e elas a desfilharem de modo que fique desolada, e ninguém possa passar por ela por causa das feras; E estes três homens estivessem no meio dela, vivo eu, diz o Senhor Deus, que nem a filhos nem a filhas livrariam; eles só ficariam livres, e a terra seria assolada. Ou, se eu trouxer a espada sobre aquela terra, e disser: Espada, passa pela terra; e eu cortar dela homens e animais; Ainda que aqueles três homens estivessem nela, vivo eu, diz o Senhor Deus, que nem filhos nem filhas livrariam, mas somente eles ficariam livres.

      Ou, se eu enviar a peste sobre aquela terra, e derramar o meu furor sobre ela com sangue, para cortar dela homens e animais, Ainda que Noé, Daniel e Jó estivessem no meio dela, vivo eu, diz o Senhor Deus, que nem um filho nem uma filha eles livrariam, mas somente eles livrariam as suas próprias almas pela sua justiça. Porque assim diz o Senhor Deus: Quanto mais, se eu enviar os meus quatro maus juízos, a espada, a fome, as feras, e a peste, contra Jerusalém, para cortar dela homens e feras?” 

Ezequiel 14.13-21


     No post de ontem refletimos sobre os quatro juízos da passagem de Ezequiel, pensemos agora sobre os três nomes citados, Noé, Daniel e Jó, o que tem de especial esses três homens para aparecerem no texto? Sem fazermos os chamados estudos bíblicos tradicionais que não representam estilo deste espaço, o que nos vem rapidamente à cabeça quando pensamos nesses homens? Noé foi primeiramente símbolo de um homem fiel e obstinado, em seu tempo, sem a unção da nova aliança, sem o Espírito de amor do evangelho, não vejo Noé como um homen afável, misericordioso, um homem prático e focado não podia ser assim. Fiel porque se manteve obediente a Deus mesmo quando ninguém mais era, obstinado porque mesmo consciente do juízo de Deus que viria sobre a sua terra, não olhou ao redor, mas manteve-se fiel ao seu chamado, construir a arca. Mas para aquela missão Deus não precisava de um servo afável, misericordioso ou mesmo evangelizador, os homens já tinham tido oportunidade de arrependimento, agora seriam punidos, sem dó. Noé era o homem que Deus precisava em seu tempo, pronto para um propósito que Deus tinha que realizar naquele momento, duro, mas fiel, atento à voz de Deus, mas pragmático com relação aos homens, se não fosse assim não teria “estômago” para suportar dentro da arca o sofrimento que a humanidade estava passando do lado de fora. Será que Deus acha em nós os homens que ele precisa pra o momento em que vivemos? Ou estamos deslocados no tempo, vivendo de passado ou sonhando com futuros ilusórios? Deus também achou em Daniel o homem que precisava para o momento, numa condição diferente da de Noé. 


      Daniel era um escravo de luxo, digamos assim, e é preciso ressaltar um ponto, geralmente quando vemos sobre escravos na Bíblia temos a tendência de aliar a ideia da escravatura de africanos, que foi usada em larga escala para suprir mão de obra na lavoura do Brasil e do mundo. Esses conceitos de escravo não são iguais, no caso do Brasil, mais moderno, os escravos faziam, via de regra, o serviço mais braçal e duro na terra, ainda que alguns fossem usados dentro das casas dos senhores de engenho para trabalhos domésticos. Esses escravos não tinham nenhum direito, eram coisas, posses que podiam ser usadas em transações comerciais e outros usos sem nenhum escrúpulo. Importante dizer também que a sociedade da época e mesmo a religião, consideravam o negro “menos” humano, por isso havia legitimidade de tratá-lo como coisa. Já nas sociedades clássicas, grega, romana, e nos tempos bíblicos, os escravos eram espólio de guerra, isso é, os perdedores nas mãos dos vencedores num embate, ou aqueles que se endividavam e não podiam mais pagar suas dívidas. Assim, eles não tinham certos direitos sociais, de ir e vir, de participação política, mas podiam desempenhar atividades em várias áreas profissionais, incluindo algumas bem nobres.

      Esse era o caso de Daniel, era escravo na corte do rei Nabucodonosor, rei da Babilônia, que havia vencido Judá em batalha e levado seu povo em cativeiro. Lemos em Daniel 1, versos 3 ao 6, “E disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, e da linhagem real e dos príncipes, Jovens em quem não houvesse defeito algum, de boa aparência, e instruídos em toda a sabedoria, e doutos em ciência, e entendidos no conhecimento, e que tivessem habilidade para assistirem no palácio do rei, e que lhes ensinassem as letras e a língua dos caldeus. E o rei lhes determinou a porção diária, das iguarias do rei, e do vinho que ele bebia, e que assim fossem mantidos por três anos, para que no fim destes pudessem estar diante do rei. E entre eles se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hananias, Misael e Azarias”, assim Daniel era um jovem especial que seria usado em tarefas especiais, que seria tratado de forma especial, mas que ainda assim era um escravo. Diferente de Noé, que recebeu um missão de Deus e só precisou manter-se fiel a Deus para cumprir a missão, sem ter que dar muita atenção aos homens, e não estou dizendo com isso que a missão de Noé foi menos difícil, Daniel estava numa situação ruim que não mudaria, seu cativeiro e de seu povo. 

     Ele seria provado várias vezes, seja com privilégios, seja com privações, seja com honras, seja com calúnias, para que não ficasse confortável com a situação de escravo de luxo e continuasse fiel a Deus. Daniel foi fiel, mas outro adjetivo que o define é sensível, diferente da obstinação dura de Noé. Sensível suficiente para desvendar mistérios espirituais, só João o evangelista recebeu de Deus mais revelações que Daniel, não só sobre seu povo, mas como sobre todo o mundo e para tempos futuros. Foi através de sua sensibilidade espiritual que Daniel foi ganhando a confiança da monarquia babilônica e conquistando posições políticas importantes. Com Daniel aprendemos que às vezes, o homem que Deus quer que sejamos, é alguém que mantenha-se fiel, vivo e sensível mesmo numa situação que temos certeza que não mudará para melhor a curto prazo, aliás, eis outra característica de Daniel, visão espiritual longa, por isso Deus revelou a ele tantos mistérios sobre o futuro. Enquanto Noé foi o homem do presente, Daniel foi o homem do futuro, e Jó, o terceiro nome do texto inicial, quem foi ele? Para fecharmos a simbologia com perfeição, Jó foi o homem do passado, e isso por vários motivos, e num bom sentido.


      Estudiosos dizem que o personagem Jó é muito antigo, e que seu livro pode ter sido escrito por Moisés, antes mesmo de Gênesis, eis uma característica que faz de Jó um homem do passado. Contudo, o passado vitorioso e próspero com certeza foi o que mais foi revivido por Jó durante sua tentação, uma situação onde perdeu tudo, e que uma pergunta lhe era feita constantemente: o que ele fez de errado para estar naquela terrível situação? Ele buscava respostas no passado e lá ele não achava motivos para ter recebido da vida uma mão tão pesada. A mesma coisa ocorre com qualquer um de nós quando passamos um sofrimento ou temos uma surpresa ruim, seja num acidente, numa enfermidade, numa grande perda, nos perguntamos, o que fizemos de errado no passado para estarmos colhendo no presente mal tão terrível? Onde estava a resposta para Jó?

      A resposta seria dada, mas não à pergunta feita inicialmente por Jó e por seus amigos, Deus muitas vezes não nos responde, não porque ele não tem resposta ou porque não estamos preparados para ela, mas porque estamos fazendo a pergunta errada. A pergunta que Deus queria responder não era, “por que sofremos?”, mas, “quem nós somos de verdade?”, com ou sem sofrimento. A resposta para essa questão também está no passado, o homem que Deus quer achar em nós é o homem que teme não as dificuldades e surpresas do futuro, ou que confia no que é e possui no presente, mas no Deus poderoso e mais que antigo que tudo, infinito na verdade, que a tudo criou e sustenta aqueles que confiam nele. 

      Alguns instantes antes da tribulação de Jó, talvez ele achasse que sua vida já estava completa, que já era momento de um descanso final, ele já era velho e tinha uma vida e uma família bem estabelecidas. Mas ainda não era o momento de usufruir de uma velhice em Deus, sua pior luta ainda seria experimentada, e ele sairia dela finalmente um homem não só envelhecido, mas amadurecido. Enquanto a luta de Noé era só com ele mesmo, visto que sabia o que Deus queria dele e como deveria agir com as pessoas, a luta de Daniel era com os homens, com seus deuses e maldades, mas a luta de Jó era diretamente com Deus, conhecer melhor o Deus que ele achava que conhecia, como consequência desse conhecimento ele se conheceria melhor também. Noé, fiel e obstinado, o homem do presente, Daniel, fiel e sensível, o homem do futuro, e Jó, fiel mas ainda uma criança na sabedoria, diante da antiguidade infinidade de Deus, Jó o homem que devia entender melhor o passado. 

      É importante que saibamos que homem Deus quer que sejamos no tempo em que estamos vivendo, se é o homem o do presente, o do futuro ou o do passado, todos são adequados, se estiverem vivendo no momento certo. O do presente obedece prontamente sem perder tempo. O do futuro sabe que muitos problemas não serão resolvidos aqui e agora, mas ainda assim permanece fiel e é sensível para saber e entender os mistérios do futuro. O do passado olha para Deus, conhece-o em profundidade e assim se conhece melhor também, não se fiando no tempo, em sua criancice, mas no altíssimo, o velho de muitos dias sobre o qual só conhecemos a face direita. A outra face permanece sempre misteriosa, para nos mostrar que sempre seremos menos que Deus e nunca saberemos tudo sobre ele, como dizem estudiosos de mistérios ocultos.

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