01/08/25

Verdade espiritual e histórica (1/3)

      “Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma terra seca; não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algumIsaías 53.2-3

      Dentro de igrejas cristãs, católicas e protestantes, podemos receber informações e as aceitarmos como verdade. Não me refiro a orientações morais, mas outras, que se não as verificarmos com ótica científica, sob a luz de fatos históricos, podemos tomar como palavra de Deus sendo que é só um senso comum cristão. Infelizmente se é dito em púlpito, por um ser humano carismático e com alguma referência de cultura que valorizamos, somos facilmente seduzidos. Interessante a passagem acima, em que Isaías pode estar referindo-se profeticamente a Jesus. Será que hoje, acostumados a “profissionais” da fé, mercadores de milagres, e teólogos que desprezam o Espírito Santo, daríamos crédito a um Cristo homem simples e puro? A palavra que em muitos casos ouvimos é uma mistura de falsa ciência com fé infantil, nisso aceitamos muita mentira como verdade. 
      Por exemplo, algo que nos acostumamos a ouvir em púlpitos é que o cristianismo veio, não só para salvar espiritualmente o mundo, mas também para trazer uma civilidade que não havia no mundo pagão. Aprendemos que a religião dos dominadores romanos, conquistadores da terra de judeus e de outros povos nos primeiros séculos, não acreditava num único Deus, mas num panteão de deuses, entendemos assim que essa prática pagã negava o Deus verdadeiro. Isso não é de todo verdade, ainda que com um exército de deuses secundários, cria-se também num deus superior a outros deuses em todo o mundo. A sabedoria está em separar as coisas, fé de ciência, verdades históricas de verdades espirituais, moralidade dos antigos e moralidade atual. Deus não muda, mas o ser humano muda, assim como as ferramentas que o ser tem para perceber e usar a matéria neste mundo. 
      Para entendermos isso podemos fazer outra pergunta: quem de fato eram os deuses pagãos? Eram anjos, demônios?  Espíritos, superiores ou inferiores, iluminados ou não? “Santos”, espíritos de seres humanos mortos aos quais o catolicismo legaliza como dignos de receber orações dos vivos e com autoridade para intermediar bênçãos entre homens e Deus? Outra pergunta: será que só passou a existir seres humanos, que no mundo tiveram uma conexão especial com o Deus verdadeiro e que por isso têm capacitação diferenciada após a morte, depois do Cristo ter cumprido sua missão? Será que não houve “santos” em outros tempos, nações ou religiões, que na verdade são chamados de panteão de deuses nas sociedades romana, grega e outras? Será que muitas entidades do afroespiritismo atual não são “santos” africanos, espíritos de antepassados célebres? Por que esses são menos dignos que os santos católicos? 
      Essa discussão sobre santos católicos é relevante para entendermos politeísmo, entidades espirituais, mesmo contato com espíritos humanos desencarnados. É certo que a teologia protestante é simplista, contato espiritual, real ou mentiroso, que não for feito com Deus pai, filho e Espírito, é contato diabólico, proibido e mesmo impossível. Mas como já foi dito aqui, reavaliemos dogmas não pela autoridade no mundo que têm aqueles que construíram os dogmas, mas pelos bons e duradouros frutos que os criadores e os seguidores de dogmas tiveram ao longo da história humana. Um estudo sério de história ocidental nos dirá muito sobre os frutos do catolicismo e do protestantismo, por isso cito abaixo o livro “Sapiens, uma breve história da humanidade”, escrito por um israelita, p.h.d. em história pela Universidade de Oxford, ateu e gay, recomendo muito a leitura desse livro. 

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      Seguem textos extraídos do livro “Sapiens, uma breve história da humanidade” de Yuval Noah Harari, capítulo 12, “A lei da religião“ (copiados do link). 

      “A ideia do politeísmo leva a uma tolerância religiosa muito maior. Como os politeístas acreditam, por um lado, em um poder supremo e completamente desinteressado e, por outro lado, em muitos poderes parciais e tendenciosos, não há dificuldade para os devotos de um deus aceitarem a existência e a eficácia de outros deuses. O politeísmo é inerentemente tolerante e raramente persegue “hereges” e “infiéis”. Mesmo quando conquistaram impérios gigantescos, os politeístas não tentaram converter seus súditos. Os egípcios, os romanos e os astecas não enviaram missionários a terras estrangeiras para disseminar o culto a Osíris, Júpiter ou Huitzilopochtli (o principal deus asteca) e certamente não mandaram exércitos com esse propósito.” 

      “O único deus que, durante muito tempo, os romanos se recusaram a tolerar foi o deus monoteísta e evangelizador dos cristãos. O Império Romano não exigia que os cristãos abdicassem de suas crenças e rituais, mas esperavam que eles respeitassem os deuses protetores do Império e a divindade do imperador. Isso era visto como uma declaração de lealdade política. Quando os cristãos se recusaram veementemente a fazer isso, rejeitando todas as tentativas de se chegar a um acordo, os romanos reagiram perseguindo o que entendiam como uma facção politicamente subversiva. Nos 300 anos decorridos desde a crucificação de Cristo até a conversão do imperador Constantino, os imperadores romanos politeístas iniciaram não mais que quatro perseguições gerais aos cristãos. Os administradores e governantes locais também incitaram certa violência contra os cristãos. Ainda assim, se considerarmos todas as vítimas de todas essas perseguições, veremos que, nesses três séculos, os romanos politeístas mataram não mais que alguns milhares de cristãos. Os cristãos, por sua vez, ao longo dos 15 séculos seguintes, assassinaram cristãos aos milhões por defenderem interpretações ligeiramente diferentes da religião do amor e da compaixão.”

      “Essas disputas teológicas ficaram tão violentas que durante os séculos XVI e XVII católicos e protestantes mataram uns aos outros às centenas de milhares. Em 23 de agosto de 1572, católicos franceses, que enfatizavam a importância de boas ações, atacaram comunidades de protestantes franceses, que salientavam o amor de Deus pela humanidade. Nesse ataque, o Dia do Massacre de São Bartolomeu, entre 5 mil e 10 mil protestantes foram assassinados em menos de 24 horas. Quando o papa em Roma ficou sabendo do ocorrido na França, foi tomado de tanta alegria que organizou preces festivas para celebrar a ocasião e encarregou Giorgio Vasari de decorar um dos aposentos do Vaticano com um afresco do massacre (o aposento atualmente está inacessível aos visitantes). Mais cristãos foram mortos por outros cristãos naquelas 24 horas do que pelo Império Romano politeísta durante toda a sua existência.

      “A primeira religião monoteísta de que temos notícia apareceu no Egito por volta de 1350 a.C., quando o faraó Aquenáton declarou que uma das deidades menores do panteão egípcio, o deus Aton, era, na verdade, o poder supremo governando o universo. Aquenáton institucionalizou o culto a Aton como religião do Estado e tentou controlar o culto a todos os outros deuses. Sua revolução religiosa, no entanto, não teve êxito. Após sua morte, o culto a Aton foi abandonado em favor do antigo panteão.

      “O judaísmo, por exemplo, afirmava que o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, mas seu principal interesse é na minúscula nação judaica e na obscura terra de Israel. O judaísmo tinha pouco a oferecer a outras nações e durante a maior parte de sua existência não foi uma religião missionária. Esse estágio pode ser chamado de estágio do “monoteísmo local”. O grande avanço veio com o cristianismo. Essa fé começou como uma seita judaica esotérica que procurava convencer os judeus de que Jesus de Nazaré era seu tão esperado messias. No entanto, um dos primeiros líderes da seita, Paulo de Tarso, ponderou que, se o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, e se Ele se deu ao trabalho de encarnar e morrer na cruz para a salvação da humanidade, então isso é algo que deve ser comunicado a todos, e não só aos judeus. Portanto, era necessário difundir a boa palavra – o evangelho – sobre Jesus para o mundo inteiro. Os argumentos de Paulo caíram em solo fértil. Em toda parte, os cristãos começaram a organizar atividades missionárias dirigidas a todos os humanos. Em uma das guinadas mais estranhas da história, essa seita judaica esotérica controlou o poderoso Império Romano.

      “Os monoteístas são no geral muito mais fanáticos e missionários que os politeístas. Uma religião que reconhece a legitimidade de outras crenças implica ou que seu deus não é o deus supremo do universo, ou que ela recebeu de Deus apenas parte da verdade universal. Como os monoteístas costumam acreditar que são detentores de toda a mensagem de um único Deus, são compelidos a descrer de todas as outras religiões. Nos últimos dois milênios, os monoteístas tentaram, repetidas vezes, se fortalecer exterminando de maneira violenta toda concorrência.

      “As religiões monoteístas expulsaram os deuses pela porta da frente com muito barulho, para em seguida aceitá-los de volta pela janela lateral. O cristianismo, por exemplo, desenvolveu seu próprio panteão de santos, cujos cultos pouco diferiam dos cultos aos deuses politeístas.

      “Na verdade, o monoteísmo, tal como se desenvolveu ao longo da história, é um caleidoscópio de legados monoteístas, dualistas e politeístas que se misturam sob um único conceito divino. O cristão típico acredita no Deus monoteísta, mas também no Diabo dualista, em santos politeístas e em fantasmas animistas. Os estudiosos das religiões têm um nome para essa aceitação simultânea de ideias diferentes e até mesmo contraditórias e a combinação de rituais e práticas tirados de fontes diferentes: sincretismo. O sincretismo talvez seja, de fato, a única grande religião mundial.

José Osório de Souza, 23/01/2023