“Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças.” Deuteronômio 6.4-5
Se alguns quiserem demonizar esta reflexão, o fato de Yuval Noah Harari, autor dos textos que cito abaixo, ser ateu e gay, será motivo suficiente, mas se você quer saber além de preconceitos considere esta palavra. A ideia de um número enorme de cristãos sendo mortos no Coliseu romano é exagerada, a Igreja Católica Romana matou mais em sua história em nome do monoteísmo que o Império Romano em nome do politeísmo. A ideia de protestantes serem heróis da fé vencendo o comércio de indulgências e a idolatria do catolicismo também não é verdadeira, houve muito sangue numa disputa que era mais política e econômica que religiosa. A ideia que catolicismo e protestantismo praticam o evangelho do amor de Jesus, respeitando o livre arbítrio que Deus dá a todo ser humano, é falsa, houve e há intolerância e violência em quem se achou e se acha missionário exclusivo da verdade maior.
Contudo, finalmente, a ideia que não há politeísmo no cristianismo atual é inverídica em grande parte do mundo cristão. Em primeiro lugar, como já citamos, o panteão de santos católicos tem a mesma função que o panteão de deuses romanos, e em muitos casos tem origem na mitologia grega, onde se praticou um sincretismo logo no início do catolicismo para agregar uma parte maior de adeptos. Mas também vemos denominações evangélicas crescendo justamente por adicionarem ao cristianismo puro, a capacitação de anjos como meios para o ser humano ter acesso às dádivas divinas. Todavia, há um politeísmo subjetivo, quando evangélicos diferentes dizem receber de um mesmo Deus orientações e aprovações diferentes. Como o Deus verdadeiro é um só, tem uma única palavra, assim, ou as pessoas mentem ou recebem palavras, não de Deus, mas de outros seres espirituais.
Outro senso comum protestante é que a nação de Israel nos tempos do antigo testamento tinha a missão de levar o Deus verdadeiro ao mundo, como a igreja cristã tem de levar Cristo. De fato vemos no antigo testamento a “história”, ainda que muitas vezes por mitos e não em fatos, da experiência de uma nação específica com Deus. O cânone construído, em parte importante por Moisés, escritor de pelo menos o pentateuco (primeiros cinco livros da Bíblia), ocupa-se em dar legitimidade ao estado, à religião e à posse de Canaã, de um povo, pelo fato desse povo ter sido gerado por um processo de seleção divina desde seu início. Começou em Adão, Sete e Noé, passou por Sem, Abraão, Jacó, Judá e Davi, e finalmente chega em Jesus o Messias. Mas a verdade é que Israel antigo não tinha intenção de ser missionário de Deus no mundo, Israel fazia uma clara distinção entre “nós” e “eles”.
A distinção entre “nós”, escolhidos e protegidos por Deus, portanto vocacionados para a vitória e neste mundo, e “eles”, os outros, que se não estão com Deus estão com o diabo, portanto, “nossos” inimigos e fadados a abrir mão de direitos para que “nós” sejamos beneficiados, divide a sociedade em dois grupos. Podemos até admitir que essa visão limitada havia nos tempos antigos, mas desejá-la no mundo atual e por muitos que se dizem cristãos, é no mínimo um retrocesso, que tem como fundamento o desconhecimento das boas novas de Jesus, do evangelho do amor, o qual não divide seres humanos em dois grupos, mas que coloca todos como irmãos que podem ser perdoados e ensinados por um único pai espiritual. Esse dualismo tem levado, por exemplo no Brasil, muitos cristãos desviados a buscarem o diabo na esquerda ideológica, já que acham que Deus só está na direita e em sua religião.
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Seguem textos extraídos do livro “Sapiens, uma breve história da humanidade” de Yuval Noah Harari, capítulo 12, “A lei da religião“ (copiados do link), se não leu na 1ª parte desta reflexão, seria interessante ler agora.
“A ideia do politeísmo leva a uma tolerância religiosa muito maior. Como os politeístas acreditam, por um lado, em um poder supremo e completamente desinteressado e, por outro lado, em muitos poderes parciais e tendenciosos, não há dificuldade para os devotos de um deus aceitarem a existência e a eficácia de outros deuses. O politeísmo é inerentemente tolerante e raramente persegue “hereges” e “infiéis”. Mesmo quando conquistaram impérios gigantescos, os politeístas não tentaram converter seus súditos. Os egípcios, os romanos e os astecas não enviaram missionários a terras estrangeiras para disseminar o culto a Osíris, Júpiter ou Huitzilopochtli (o principal deus asteca) e certamente não mandaram exércitos com esse propósito.”“O único deus que, durante muito tempo, os romanos se recusaram a tolerar foi o deus monoteísta e evangelizador dos cristãos. O Império Romano não exigia que os cristãos abdicassem de suas crenças e rituais, mas esperavam que eles respeitassem os deuses protetores do Império e a divindade do imperador. Isso era visto como uma declaração de lealdade política. Quando os cristãos se recusaram veementemente a fazer isso, rejeitando todas as tentativas de se chegar a um acordo, os romanos reagiram perseguindo o que entendiam como uma facção politicamente subversiva. Nos 300 anos decorridos desde a crucificação de Cristo até a conversão do imperador Constantino, os imperadores romanos politeístas iniciaram não mais que quatro perseguições gerais aos cristãos. Os administradores e governantes locais também incitaram certa violência contra os cristãos. Ainda assim, se considerarmos todas as vítimas de todas essas perseguições, veremos que, nesses três séculos, os romanos politeístas mataram não mais que alguns milhares de cristãos. Os cristãos, por sua vez, ao longo dos 15 séculos seguintes, assassinaram cristãos aos milhões por defenderem interpretações ligeiramente diferentes da religião do amor e da compaixão.”“Essas disputas teológicas ficaram tão violentas que durante os séculos XVI e XVII católicos e protestantes mataram uns aos outros às centenas de milhares. Em 23 de agosto de 1572, católicos franceses, que enfatizavam a importância de boas ações, atacaram comunidades de protestantes franceses, que salientavam o amor de Deus pela humanidade. Nesse ataque, o Dia do Massacre de São Bartolomeu, entre 5 mil e 10 mil protestantes foram assassinados em menos de 24 horas. Quando o papa em Roma ficou sabendo do ocorrido na França, foi tomado de tanta alegria que organizou preces festivas para celebrar a ocasião e encarregou Giorgio Vasari de decorar um dos aposentos do Vaticano com um afresco do massacre (o aposento atualmente está inacessível aos visitantes). Mais cristãos foram mortos por outros cristãos naquelas 24 horas do que pelo Império Romano politeísta durante toda a sua existência.”“A primeira religião monoteísta de que temos notícia apareceu no Egito por volta de 1350 a.C., quando o faraó Aquenáton declarou que uma das deidades menores do panteão egípcio, o deus Aton, era, na verdade, o poder supremo governando o universo. Aquenáton institucionalizou o culto a Aton como religião do Estado e tentou controlar o culto a todos os outros deuses. Sua revolução religiosa, no entanto, não teve êxito. Após sua morte, o culto a Aton foi abandonado em favor do antigo panteão.”“O judaísmo, por exemplo, afirmava que o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, mas seu principal interesse é na minúscula nação judaica e na obscura terra de Israel. O judaísmo tinha pouco a oferecer a outras nações e durante a maior parte de sua existência não foi uma religião missionária. Esse estágio pode ser chamado de estágio do “monoteísmo local”. O grande avanço veio com o cristianismo. Essa fé começou como uma seita judaica esotérica que procurava convencer os judeus de que Jesus de Nazaré era seu tão esperado messias. No entanto, um dos primeiros líderes da seita, Paulo de Tarso, ponderou que, se o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, e se Ele se deu ao trabalho de encarnar e morrer na cruz para a salvação da humanidade, então isso é algo que deve ser comunicado a todos, e não só aos judeus. Portanto, era necessário difundir a boa palavra – o evangelho – sobre Jesus para o mundo inteiro. Os argumentos de Paulo caíram em solo fértil. Em toda parte, os cristãos começaram a organizar atividades missionárias dirigidas a todos os humanos. Em uma das guinadas mais estranhas da história, essa seita judaica esotérica controlou o poderoso Império Romano.”“Os monoteístas são no geral muito mais fanáticos e missionários que os politeístas. Uma religião que reconhece a legitimidade de outras crenças implica ou que seu deus não é o deus supremo do universo, ou que ela recebeu de Deus apenas parte da verdade universal. Como os monoteístas costumam acreditar que são detentores de toda a mensagem de um único Deus, são compelidos a descrer de todas as outras religiões. Nos últimos dois milênios, os monoteístas tentaram, repetidas vezes, se fortalecer exterminando de maneira violenta toda concorrência.”“As religiões monoteístas expulsaram os deuses pela porta da frente com muito barulho, para em seguida aceitá-los de volta pela janela lateral. O cristianismo, por exemplo, desenvolveu seu próprio panteão de santos, cujos cultos pouco diferiam dos cultos aos deuses politeístas.”“Na verdade, o monoteísmo, tal como se desenvolveu ao longo da história, é um caleidoscópio de legados monoteístas, dualistas e politeístas que se misturam sob um único conceito divino. O cristão típico acredita no Deus monoteísta, mas também no Diabo dualista, em santos politeístas e em fantasmas animistas. Os estudiosos das religiões têm um nome para essa aceitação simultânea de ideias diferentes e até mesmo contraditórias e a combinação de rituais e práticas tirados de fontes diferentes: sincretismo. O sincretismo talvez seja, de fato, a única grande religião mundial.”
José Osório de Souza, 23/01/2023
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