terça-feira, setembro 05, 2023

Guarde o bem que viveu

      “Para aquele que está entre os vivos há esperança, porque mais vale um cão vivo do que um leão morto.Eclesiastes 9.4

      Andando pela grande casa de meus sogros, que vivem na mesma residência há mais de cinquenta anos, onde minha esposa e seus irmãos foram criados, vejo aqueles enfeites, bibelôs, estatuetas, porta-retratos, quadros, porcelanas, cristais, móveis e outros objetos de decoração típicos de casas de pessoas na faixa dos oitenta anos. Alguns podem chamar de brega, outros só de antiguidades, uma arquiteta, conhecida minha, diz que essas velharias são desnecessárias, de mau gosto, assim decora o apartamento em que vive com a mãe, uma octagenária, com a modernidade clean e fria. Quando visito o apartamento dessa conhecida, sinto um vazio, sinto gosto de morte, sinto um corpo sem alma, de quem se desfez de memórias antes do tempo.
      Viver é colecionar memórias, quem viveu tem memórias e gosta delas, nem todas são boas, nem todas são bonitas, nem todas ornam com estéticas atuais, nem todas são úteis hoje, mas são nossas identidades, nos fazem existir neste mundo e nas vidas de outras pessoas. Que adianta o corpo estar vivo hoje, se a alma está morta? Quando ando pela casa de meus sogros a vida é tão densa que pode ser tocada, ela é real, minha caçula diz, aqui tem cheiro de vovô e vovó. A conhecida que citei acima, que mora num apartamento que parece aposentos de um hospital, disse-me que foi com uma amiga à residência dos pais dessa amiga, que falecidos deixaram uma casa, conforme ela, repleta de tranqueiras démodés para serem descartadas. 
      Felizes os que têm memórias bregas para serem passadas para filhos, netos, bisnetos e outros, essas são referências, legados que deixaram no mundo, provas que viveram, que amaram, que escolheram, que lutaram e conquistaram o que fazia-lhes felizes, ainda que muitos achem antiquado hoje. Todos somos um pouco acumuladores, e nisso nada há de errado, são nossos corpos segurando suas existências neste plano. Deixemos a modernidade para os novos, mas que esses aprendam a dar valor para o que possuem em seus tempos de juventude. Envelhecer é encerrar certas coisas com satisfação, dar um fim às mudanças da aparência para focar nas transformações do interior. Quem pode ser sempre novo é o espírito, não o corpo. 
      Ainda que se deva manter corpos saudáveis, não se pode ser sempre jovem, mudar e mudar por fora para tentar harmonizar corpo envelhecido com espírito imaturo, precisamos alcançar algo e usarmos isso como fundamento para construirmos algo duradouro, o que dura está dentro de nós, não fora. Alguns até constróem alguma coisa, mas como são egoístas e vaidosos jogam fora o que conseguiram, só para serem vistos como novos e modernos. Talvez algumas pessoas sintam-se bem numa casa com cores, espaços, móveis, eletrodomésticos e outros adereços e utensílios de acordo com a última tendência, mas quem quiser sentirá vida se movendo por casas antigas, verá espíritos na sala, almas na copa, o tempo vívido no ar.
      Ninguém pode ser leão para sempre, esse morre e dá lugar a um cachorro, domesticado, afável, manso, quem quer aparentar um leão no tempo errado só mostrará a morte. Melhor ser um cão, mais fraco que o leão, menos voraz, não mais agressivo, não jovem, mas velho, em paz e vivo. “Mais vale um cão vivo do que um leão morto”, e todos nos tornamos cãozinhos na velhice, ainda que com memórias de jovens leões na cabeça. Feliz o que amansou o leão e que libertou o cão, feliz o que não quer vencer atacando, subjugando, ferindo, matando, mas aliando-se, abraçando, amando, pronto para encontrar seu amigo maior, Deus, no final de um dia de trabalho que se chama vida neste mundo, menor por fora, mas forte por dentro. 

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