sábado, agosto 20, 2022

Instantânea ou gradativa? (20/92)

       “Disse-vos isto por parábolas; chega, porém, a hora em que não vos falarei mais por parábolas, mas abertamente vos falarei acerca do Pai. Naquele dia pedireis em meu nome, e não vos digo que eu rogarei por vós ao Pai; pois o mesmo Pai vos ama, visto como vós me amastes, e crestes que saí de Deus. Saí do Pai, e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo, e vou para o Pai.” João 16.25-28
 
      “Aquele que perseverar até ao fim será salvo” (Mateus 24.13), essa afirmação é repetida várias vezes no novo testamento, entendemos por ela que salvação ou espiritualidade não é algo que se obtém instantaneamente, mas através de persistente trabalho. “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo” (Atos 16.31a), nesse texto, contudo, podemos entender diferentemente, que quem crê é instantaneamente salvo, assim possui salvação ou espiritualidade baseada numa decisão inicial de fé, não por contínuas obras no tempo. Seriam salvação e espiritualidade a mesma coisa para o cristianismo tradicional? Isso pode ser concluído quando se entende que só o salvo terá direito eterno ao céu, efeito final daquilo que o cristianismo considera espiritualidade. 
      A Bíblia possui ensinos contraditórios, apesar de muitos teólogos não admitirem, e nisso nada há de excepcional, como poderiam homens de tempos, lugares e níveis intelectuais diferentes, interpretarem espiritualidade da mesma forma? Prefiro entender que Deus permite ensinos em alguma instância distintos, para que não se use a Bíblia como leis, que devem ser obedecidas ao pé da letra, mas para que o homem atual, e do futuro, possa aprender com experiências dos antigos sob interpretação viva do Espírito Santo, conhecendo a verdade com questionamentos racionais e perseverante vida de oração. Fé é trabalho constante, o tempo todo nossa fé é confrontada, largamos mão dela e voltamos a senti-la com fervor mais vezes que assumimos.

      O texto bíblico inicial ensina-nos alguns princípios importantes sobre a espiritualidade verdadeira, não necessariamente a das religiões, mas a de Deus. Um deles é que Deus revela-nos espiritualidade de forma gradativa, assim Jesus disse verdades eternas, mas muitas delas, por causa dos níveis moral, intelectual e espiritual do homem do primeiro século, assim como de muitos homens dos séculos futuros a esse e mesmo do século atual, através de parábolas. Comparemos essas parábolas às estórias que contamos a crianças, existe uma interpretação ao pé da letra dessas estórias, benéfica para a criança e que ela entende sem muitos esforços, mas existe uma interpretação mais profunda que ela só entenderá quando crescer e amadurecer.
      Por trás de chapeuzinho vermelho, da floresta, do lobo, do caçador e da vovozinha, existe muito mais que um conto de fadas infantil (pesquise na internet e achará muitas interpretações desses simbolismos), assim há muito mais por trás das parábolas de Jesus. Mas Cristo disse que na hora certa não usaria mais de parábolas, porque não precisaria usar mais, para que ele não precisasse usar mais esse recurso duas coisas tinham que acontecer, o ser humano estar preparado e uma ferramenta mais adequada para isso estar disponível. Essa ferramenta não poderia ser Jesus, seu ministério como homem foi curto, a ferramenta é o Espírito Santo, que permite mesmo no mundo, que Deus fale ao ser humano de maneira mais profunda.
      Por não aceitar que espiritualidade é experiência gradativa (já refletimos em Uma espiritualidade gradativa), é que religiões são criadas e que homens são amarrados a conhecimentos iniciais, ainda que tenham direito à espiritualidade mais alta. Por isso textos bíblicos são idolatrados, quem não tem a viva palavra do Espírito precisa de leis em papel para ter um guia, mas é também por isso que dogmas e tradições são construídos, prendendo os homens a uma liberdade restrita que não deixa o Espírito Santo agir e que não coloca em risco o poder de manipulação dos líderes. Não é só na religião que essa estratégia é usada, pela política também se mantém pessoas com pouca escolaridade na sociedade para que não saibam votar certo.
      Mas no texto bíblico inicial é na seguinte parte que algo importante sobre espiritualidade é revelado, “não vos digo que eu rogarei por vós ao Pai, pois o mesmo Pai vos ama, visto como vós me amastes”. Pode-se interpretar esse texto simplesmente entendendo que se referia só aos discípulos que andaram com Cristo no mundo, que Jesus só estava dizendo que não poderia mais interceder por eles, como fazia, porque morreria, mas que continuaria fazendo isso no plano espiritual. Contudo, podemos entender algo mais profundo, e de uma forma mais ampla, que homens de todos os tempos chegarão a níveis espirituais onde terão acessos mais diretos a Deus, quando poderão nem necessitar de certas ajudas de Deus. 
      Jesus diz que não pedirá a Deus pelos homens, mas Deus os responderá pelo amor que eles deram a ele como filho de Deus. Jesus será sempre um meio único para nos achegarmos a Deus, “naquele dia pedireis em meu nome”, mas não da maneira que muitos acham que é. Levanto uma questão: Jesus é o meio, por nos mostrar como fazer, ou por ter feito por nós? Na verdade é as duas coisas, ele fez o que não poderíamos fazer colocando-se numa posição espiritual que nos dá acesso a Deus de forma exclusiva, mas isso é só o primeiro passo da espiritualidade. Os outros passos, usando a força que o primeiro passo dá, que nos permite ter a paz dos perdoados (Romanos 5.1), são para trabalharmos neste mundo e crescermos. 
      Paz é fundamental, já que muitas vezes o que nos impede de prosseguir para construir um futuro melhor, é a culpa pelo que fizemos no passado. Jesus nos dá perdão de Deus no presente, retira a condenação da lei que mostra onde erramos, mas não nos capacita para acertar. Contudo, trabalhar para sermos alguém melhor no mundo é algo que depende só de nós, nisso não estamos sozinhos. Está conosco hoje no mundo o Espírito Santo, é esse em nós que nos dá a possibilidade de nos movermos espiritualmente e diretamente para a porta, que é Jesus, para termos acesso a Deus. Fé não transforma, nos posiciona nas virtudes espirituais mais altas de Deus para que nos transformemos neste mundo através de boas obras.
      Por qual razão sinto de Deus que é tão importante entendermos isso? Porque uma doutrina, no mínimo infantil e no máximo mal intencionada, tem mimado os cristãos, acomodando-os e limitando-os, o resultado é uma grande maioria de cristãos imatura espiritualmente, escravizada a superstições e presa fácil de heresias e de homens maus. Aceitar algumas coisas só pela fé pode alimentar e legitimar preconceitos, como por exemplo achar que quem crê vai para o céu, e que quem não crê vai para o inferno, extremos opostos e eternos, desconsiderando prática de vida, e só levando em consideração aceitação de um credo religioso pela fé. Será que isso basta para salvar e condenar para sempre, para definir espiritualidade? 
      Um filho que recebe uma enorme herança não se esforçará para trabalhar, para quê? Já tem tudo o que precisa de graça? É isso que falsas doutrinas evangélicas têm feito por séculos a muitos homens, e não venham com o argumento que enaltece a graça e a misericórdia de Deus. Nenhum pai se alegra com filhos que crescem no corpo, mas não na responsabilidade, que não adquirem independência para saírem do lar paterno para terem seus próprios lares, por que Deus desejaria isso para seus filhos? Mas a Igreja Católica e as denominações protestantes e evangélicas querem filhos infantis para que possam controlar e usar. Tenhamos, pois, coragem para romper com cordões umbilicais, então adquirirmos espiritualidade. 

Leia na postagem de ontem
a 1ª parte desta reflexão.
José Osório de Souza, 3/09/2021

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