sexta-feira, abril 22, 2016

Editora Vida Nova: Há mitos na Bíblia?

O texto que segue é da Revista Teologia Brasileira.

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Há mitos na Bíblia?

Os liberais sempre estiveram certos. Há mitos na Bíblia. Mitos eram abundantes no mundo religioso do Antigo Oriente ao redor de Israel, bem como nas religiões à época da Igreja apostólica do primeiro século. Por conseguinte, os escritores bíblicos registraram vários deles em suas obras.

No Antigo Testamento encontramos vários desses mitos. Há a crença dos cananeus de que existiam deuses chamados Astarote, Renfã, Dagom, Adrameleque, Nibaz, Asima, Nergal, Tartaque, Milcom, Astarote, Renfã e Baal.

Sobre este último, há o mito de que podia responder com fogo ao ser invocado por seus sacerdotes. Há também o mito egípcio de que o Nilo, o sol e o próprio Faraó eram divinos; o mito filisteu do rei-peixe Dagom; e que o Deus de Israel precisava de uma oferta de hemorróidas e ratos de ouro para ser apaziguado. Para não falar do mito cananeu da Rainha dos Céus, que exigia incenso e libações (bolos) dos adoradores (Jeremias 44.17-25).

Outro mito na Bíblia é que o sol, a lua e as estrelas eram deuses, mito esse que sempre foi popular entre os judeus e radicalmente combatido pelos profetas (IIReis 23.5,11; Ezequiel 8.16). O mito pagão de monstros e serpentes marinhas é mencionado em Jó, Salmos e Isaías, em contextos de luta contra o Deus de Israel, em que eles representam os poderes do mal, os povos inimigos de Israel (Jó 26.10-13; Salmos 74.13-17; Isaías 27.1).

A lista é enorme. Há muitos mitos espalhados pelos livros do Antigo Testamento.

O livro de Jó cita mitos de outros povos, como Rahab e Leviatã, mas não podemos imaginar que o autor, por isto, esteja dizendo que os aceita como verdade. Os profetas, apóstolos e autores bíblicos se esforçaram por mostrar que os mitos eram conceitos humanos, falsos, e em chamar o povo de Deus a submeter-se à revelação do Deus que se manifestou poderosa e sobrenaturalmente na História. Eles sempre estiveram empenhados em separar mitologia de história real, e invenções humanas da revelação de Deus. Elias desmitificou Baal no alto do Carmelo. Moisés também desmitificou o Nilo, o sol e o próprio Faraó, provando, pelas pragas que caíram, que a divindade deles era só mito mesmo. E quando ele queimou o bezerro de ouro e o reduziu a cinzas, desmitificou a idéia de que foi o bovino dourado quem tirou o povo de Israel do Egito. O próprio Deus se encarregou de derrubar o mito de Dagom, rei-peixe dos filisteus, quando a sua imagem caiu de bruços diante da Arca do Senhor e teve a cabeça cortada (ISamuel 5.2-7).

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo se refere por quatro vezes aos mythoi (grego). Mitos são estórias profanas inventadas por velhas caducas (ITimóteo 4.7), que promovem controvérsias em vez da edificação do povo de Deus na fé (ITimóteo 1.4). Entre os próprios judeus havia muitas dessas fábulas, histórias fantasiosas (Tito 1.14). E já que as pessoas preferem os mitos à verdade (IITimóteo 4.4), Timóteo e Tito, a quem Paulo escreveu essas passagens, deveriam adverti-las, e eles mesmos deveriam se abster de se deixar envolver nesses mitos. A advertência era necessária, pois os cristãos das igrejas sob a responsabilidade deles vinham de uma cultura permeada por mitos.

O próprio Paulo se deparou várias vezes com esses mitos. Uma delas foi em Listra, quando a multidão o confundiu, juntamente com Silas, com os deuses do Olimpo e queria sacrificar-lhes (Atos 14.11). Outra vez foi em Éfeso, quando teve de enfrentar o mito local de que uma estátua da deusa Diana havia caído do céu, da parte de Júpiter, o chefe dos deuses (Atos 19.35). Em todas essas ocasiões, Paulo procurou afastar as pessoas dos mitos e trazê-las para a fé na ressurreição de Jesus Cristo. De acordo com Paulo, mitos são criações humanas, oriundas da recusa do homem em aceitar a verdade de Deus. Ao rejeitar a revelação de Deus, os homens inventaram para si deuses e histórias sobre esses deuses, que são as religiões pagãs (Romanos 1.17-32).

Pedro também estava perfeitamente consciente do que era um mito. Quando ele escreve aos seus leitores acerca da transfiguração e da ressurreição de Jesus Cristo, faz a cuidadosa distinção entre esses fatos que ele testificou pessoalmente e mithoi , “fábulas engenhosamente inventadas” (2Pe 1.16). Ele sabia que a história da ressurreição poderia ser confundida com um mito, algo inventado espertamente pelos discípulos de Jesus. Ao que parece, Paulo e Pedro, juntamente com os profetas e autores do Antigo Testamento, estavam perfeitamente conscientes da diferença entre uma história real e outra inventada.

Dizer que os próprios autores bíblicos criaram mitos significa dizer que eles sabiam que estavam mentindo e enganando o povo com estórias espertamente inventadas por eles. Seus escritos mostram claramente que eles estavam conscientes da diferença entre uma história inventada e fatos reais. Através da História, os cristãos têm considerado o mito como algo a ser suplantado pela fé na revelação bíblica, que registra os poderosos atos de Deus. Equiparar as narrativas bíblicas aos mitos pagãos é validar a mentira e a falsidade em nome de Deus. É adotar uma mentalidade pagã e não cristã.

Existe, naturalmente, uma diferença entre o mito neoliberal e os contos que aparecem na Bíblia. Há várias histórias na Bíblia, criadas pelos autores bíblicos, que claramente nunca aconteceram. Contudo, elas nunca são apresentadas como história real, como fatos reais sobre os quais o povo de Deus deveria colocar sua fé, mas como comparações visando ilustrar determinados pontos de fé, ou linguagem figurada. São as parábolas, os contos, como aquela história do espinheiro falante contada por Jotão (Juízes 9.7). Há também a poesia, quando se diz que as estrelas cantam de júbilo, que Deus cavalga querubins e viaja nas asas do vento. Os salmos contêm muito disso. Quando os neoliberais deixam de reconhecer a diferença entre mitos e gêneros literários que usam licença poética e linguagem figurada, fazem uma grande confusão.

Eu disse que a atitude dos profetas, apóstolos e autores bíblicos em relação ao mito foi de desmitificação . Eu sei que dizer isso é anacrônico, pois foi somente no século passado que Rudolph Bultmann propôs seu famoso programa de desmitificação da Bíblia. Ele achava que havia mitos na Bíblia e que era preciso separá-los da verdade. Mas, antes dele, os próprios profetas, apóstolos e autores bíblicos já haviam manifestado essa preocupação. É claro que eles e Bultmann tinham conceitos diferentes. Mas se ao fim o mito é uma história de caráter religioso que não tem fundamentos na realidade e que se destina a transmitir uma verdade religiosa, eles não são, de forma alguma, uma preocupação exclusiva de teólogos modernos.

Vejam então que o programa de desmitificação começou muito antes de Bultmann! Começa na própria Bíblia, que nos chama a separar a verdade do erro.

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=36

quinta-feira, abril 21, 2016

Editora Vida Nova: Canonicidade Bíblica

O texto que segue é da Revista Teologia Brasileira.

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Canonicidade Bíblica

Introdução

Praticamente não nos envolvemos em debates acerca da composição e extensão das Escrituras do Antigo e Novo Testamento. Isso porque já nascemos com uma Bíblia na mão, não importa a tradição. As Sociedades Bíblicas já nos entregam a “bíblia” pronta e não percebemos que a “Coleção de Escritos” ali contida tem um longo processo de formação e calorosas discussões. Premissas acerca da Autoridade da Igreja, Inspiração dos Textos Sagrados, de sua Preservação, da Revelação e outros assuntos são subjacentes à Canônica 1.

Embora o resultado da forma final das “bíblias”2  seja decisão Conciliar como veremos abaixo, é preciso um exame histórico-teológico da questão. Como diz F. F. Bruce3 :

A crença cristã histórica é que o Espírito Santo, que presidiu à formação de cada um dos livros, também lhes dirigiu a seleção e incorporação, continuando assim a cumprir à promessa do Senhor de que ele guiaria os discípulos a toda verdade. Isso, no entanto, só pode ser discernido por uma percepção espiritual, e não por uma pesquisa histórica. Nosso propósito, então, é averiguar o que a pesquisa histórica revela sobre a origem do cânon neotestamentário. Alguns dirão que nós aceitamos os vinte e sete livros do Novo Testamento pela autoridade da Igreja, mas mesmo assim como essa instituição veio a reconhecer esses livros, e nenhum outro mais, como dignos de serem colocados no mesmo nível de inspiração e autoridade do cânon do Antigo Testamento?

Essas indagações nos conduzem a ver que muitos aspectos importantes acerca do Cânon ainda precisam ser debatidos. Para muitos, algumas questões resolvem-se apelando para as mesmas decisões conciliares. Por exemplo, entre os Protestantes, especialmente aqueles ligados à Confessionalidade Histórica, pode-se simplesmente apelar para uma Confissão e dar a discussão por encerrada. Vejamos o caso de nossos Símbolos, especialmente em sua Confissão de Fé. No Capítulo I e § 2 e 3, diz o Símbolo sobre a extensão do Cânon:

II. Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos os livros do Velho e do Novo Testamento, que são os seguintes, todos dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e de prática: O Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, I Samuel, II Samuel, I Reis, II Reis, I Crônicas, II Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Isaías, Jeremias, Lamentações de Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. O Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, I Coríntios, II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I Tessalonicenses, II Tessalonicenses, I Timóteo, II Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, I Pedro, II Pedro, I João, II João, III João, Judas, Apocalipse. III. Os livros geralmente chamados Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do cânon da Escritura; não são, portanto, de autoridade na Igreja de Deus, nem de modo algum podem ser aprovados ou empregados senão como escritos humanos.

Note que a CFW apresenta os 66 livros como o temos hoje nas Bíblias Protestantes, bem como a rejeição dos livros chamados apócrifos, mas não apresenta os critérios para esta coleção. Houve um longo processo histórico para aceitação e, ainda hoje, pelo menos entre os Protestantes, não há mais discussão sobre tal extensão.4  No entanto, as Bíblias Católicas possuem uma extensão diferente dos Protestantes.

O estudo do Cânon é importante para que se possa obedecer a Deus de forma correta e não incorrer em morte: “Porque esta palavra não vos é vã, antes é a vossa vida; e por esta mesma palavra prolongareis os dias na terra a qual, passando o Jordão, ides a possuir” (Dt 32. 47).

Nome e Conceito (Canonicidade e Apócrifos) 5

A palavra Cânon (kanw,n), de origem semita, significa cana de medir ou régua. Segundo informa Philipp Vielhauer,6  o uso figurado do termo foi aplicado a diversas áreas: estética, gramatical, hermenêutica, ética, filosófica e religiosa. Passou a ter, então, o sentido de norma ou regra. O termo aparece 62 vezes no AT (Jó 31. 22; Is. 46. 6; 2 Rs. 18. 21).

No Novo Testamento (NT) a palavra kanón aparece 4 vezes: em Gl 6. 16: “e, a todos quantos andam conforme esta regra”; Paulo usa no sentido de regra moral ou lei moral e em 2Co. 10. 13, 15, 16, onde aparece respectivamente “reta”, “nossa regra”, “além”, com o sentido de esfera de ação demarcada por Deus.

Entre os Pais da Igreja, pode-se verificar que Clemente de Roma usa a palavra como “cânon de obediência”. Clemente de Alexandria chama a harmonia do Antigo e NT de “cânon eclesiástico”. Irineu, em referência ao Credo Batismal, o chama-o “Cânon da Verdade”(kanw.n tn/j avlhqei,aj). Policarpo chama o Evangelho de “Cânon da Fé”. As Sagradas Escrituras foram chamadas de “regra (cânon) de todas as coisas”, enquanto Isodoro de Pelúsio a chama de “divinas Escrituras, Cânon da Verdade”. Muitos são testemunhos antigos que poderiam ser alistadas aqui para mostra que o termo “cânon” já estava sendo utilizado como um padrão, uma regra.

É óbvio que a Igreja em si não precisou formar para si a ideia de um cânon,7  até porque o Cristianismo, como descendente do Judaísmo (At 9.2;24.5,14;28.22), não estava sem uma “Escritura Sagrada”. Simplesmente, o Cristianismo recebeu como Palavra de Deus as “Antigas Escrituras” como autoridade a priori.8  As palavras de Benjamin Warfield são interessantes aqui. Diz ele:
A igreja cristã não precisou formar para si a ideia de um ‘cânon’ [...], ou seja, de uma coleção de livros dados por Deus para ser a regra autoritativa de fé e prática. Ela herdou esta ideia da igreja judaica, juntamente com a coisa em si, as Escrituras judaicas, ou o cânon ‘do Antigo Testamento’ [...] A igreja cristã, portanto, nunca existiu sem a ‘Bíblia’ ou sem um ‘cânon’ 9

Porém, o termo Cânon foi aplicado aos escritos do AT/NT no 4.º século e isso em dois sentidos: 10 primeiro, como “registro oficial”, um “catálogo”, aplicado à lista dos livros reconhecidos na Igreja como escritos sagrados. No segundo sentido, o termo foi usado como “norma normans” (norma normativa), aplicado à Coleção de Escritos Sagrados como regra de ensino e vida de igreja pelo conteúdo destes escritos. Portanto, quando a Igreja Cristã recebeu e confirmou a lista dos livros aceitos e recebidos como inspirados, a palavra cânon passou a ser usada para expressar o conteúdo das Escrituras como se encontra nestes livros. Assim, “cânon é o corpo de escritos havidos por únicos possuídos de autoridade normativa para a fé cristã, em contraste com os escritos que não o são, ainda que contemporâneo”.

Quanto ao termo “apócrifo” (gr. Apokryphos), que significa “oculto”, “secreto” ou “escondido”. Segundo Geisler,11  o termo “geralmente se refere a livros polêmicos do AT que os protestantes rejeitam e os católicos romanos e as igrejas ortodoxas aceitam”. Porém, os que aceitam tais livros os chamam de “deuterocanônicos”, distinguindo, assim, dos livros do Cânon Judaico (AT) chamado de Protocanônico.

O termo foi aplicado primariamente a “livros místicos de sentido obscuro e esotérico que só se deveriam colocar nas mãos de uns poucos iniciados, capazes, por isso mesmo, de os entenderem, pois ao povo em geral eram inteiramente ininteligíveis”.  Assim foi chamado o livro de Zoroastro. Posteriormente o termo passou a designar a literatura espúria, falsa ou fictícia e, por fim, aos heréticos. Daí “entre os cristãos”, diz Bentezen , o termo significar os “escritos que estão excluídos do Cânon”. Entre os Judeus havia um termo para diferenciar entre os Canônicos e Apócrifos: “os que mancham as mãos” e “os que não mancham as mãos”.

A Revelação Auto-Autenticada de Deus – Critério Primeiro para Canonicidade 14

Para nossa discussão neste escrito, propomos estudar o tema do Cânon começando com o pressuposto da Revelação de Deus. Primeiro, porque, como Cristãos, justificamos nossas crenças no próprio Deus e não nas opiniões ou especulações humanas. Sendo assim, a Revelação é a garantia de nosso conhecimento. Na Luz do Senhor vemos a Luz (Sal 36.9). Ora, se em Cristo Jesus estão escondidos todos os tesouros da sabedoria, então o princípio de nossa sabedoria começa com o Senhor Jesus e sua revelação auto-autenticada (Col 3.2).

Sendo assim, primeiramente trataremos da auto-autenticação dos Documentos Bíblicos, percebendo que não é a Igreja que tem autoridade sobre as Escrituras, mas, sim ao contrário: as Escrituras, sendo Revelação de Deus, têm autoridade sobre a Igreja. Diferente dos Romanistas, não repousamos a nossa fé na Tradição, mas sobre o testemunho de Deus como registrado em sua Palavra.15  São apropriadas as palavras de Charles Hodge16:

Não cremos que o Novo Testamento seja divino com base no testemunho da Igreja. Aceitamos os livros incluídos nas Escrituras canônicas sobre a dupla base da evidência interna e externa. Pode-se provar historicamente que esses livros foram escritos por homens cujos nomes carregam; e pode-se também provar que esses homens foram instrumentos devidamente autenticados do Espírito Santo. A evidência histórica que determina a autoria do Novo Testamento não é exclusivamente a dos pais cristãos. O testemunho dos escritores pagãos é, em alguns aspectos, de maior peso que o dos próprios pais. Podemos crer no testemunho da testemunho da história inglesa, eclesiástica e secular, de que os Trinta e Nove Artigos foram elaborados pelos reformadores ingleses, sem sermos tradicionalistas. De igual forma, podemos crer que os livros do Novo Testamento foram escritos pelos homens cujos nomes carregam sem admitir a tradição como parte da regra de fé. Além disso, a evidência externa de qualquer gênero é uma parte bastante subordinada do fundamento da fé protestante nas Escrituras. Esse fundamento é principalmente a natureza das doutrinas nela reveladas, bem como o testemunho do Espírito, com e pela verdade, ao coração e à consciência. Cremos nas Escrituras pela mesma razão que cremos no Decálogo.

Sendo assim, o fundamento para aceitação dos Livros autoritativos independe de alguém reconhecer ou não sua canonicidade. Antes, a “natureza (ou razões) da canonicidade é, portanto, logicamente distinta da história (ou reconhecimento) da canonicidade”. 17 Então, de que depende? Tenho, dentro deste arcabouço pressuposicional, que dois fatores são primordiais. O primeiro, a Inspiração torna a autoridade de um livro reconhecidamente divino. Se Deus falou, o que ele diz é autoridade suficiente. Na entrega de Sua Palavra, Deus mesmo é a sua garantia Cf. Gn 22. 16; Hb 6.13). Independente da resposta humana, os escritos são, em si mesmo, canônicos. A Escritura, portanto, não se torna divina através de reconhecimento individual ou coletivo18 . Pode parecer que esse critério seja subjetivo, mas não é. Antes, ele é corroborado pela própria Escritura (Deut. 4.2; Pv 30. 5, 6; Apoc. 22. 18, 19). 19 Segundo, aliado à Inspiração, temos também a Providência. Nem tudo que Deus revelou foi preservado ou escrito (Nm 21.14; Js 10. 31; 2Cro 9.29; 12.15; Jo 21.25; 1Co 5.9; 12.28; 2Co 2.4; 7.8; 12.4, 7; Rev. 10.4), nem por isso era menos autoritativo do que o que foi escrito e preservado. O

Cânon para e da igreja, então, deve ser aquele que foi inspirado e preservado.20

Nesse sentido, o que temos? Das coleções mais antigas da Bíblia, iniciando pelos Dez Mandamentos,21  quando o próprio Senhor escreveu as Tábuas (Êx. 31.18), lemos também: “E aquelas tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas”(Êx 32.16; Dt 4.13; 10.4). As Tábuas foram guardadas e preservadas na Arca da Aliança (Dt 10.5). A partir daí, a revelação escrita e que seria preservada cresce por meio da daqueles a quem o Espírito Santo falou (2Pe 1.21). Desse modo, Moisés, como profeta de Deus (Dt 34.10), recebeu de Deus a ordem para escrever sua revelação (Dt 31. 24 – 26; Êx 17.14; 24.4; 34.27; Nm 33.2; Dt 31.22). O mesmo se deu com Josué (Js 24.26). Wayne Grudem chama a atenção de que esse acréscimo feito por Josué seria impensável frente à advertência de nada acrescentar à Palavra de Deus (Dt 4.2; 12.32). 22 A conclusão é que, ou Josué desobedeceu ou que estava tão certo de que o que ele escrevia era revelação autorizada de Deus. Os Escritos de Moisés foram recebidos como Palavra de Deus. Por exemplo, de Josué, que recebeu a ordem de estudar e guardar as palavras reveladas a Moisés (Js 1. 7,8) a Malaquias (4.4 – 6), a Lei revelada a Moisés considerada como a Palavra de Deus, não sendo preciso um concílio (ou a antiga igreja) a definir sua canonicidade.

Especialmente relevante é o aumento dos escritos por parte dos profetas (Cf. 1Sm 10.25; 1Cr 29.29; 2Cro 20.34; 1Rs 16.7; 2Cr 26.22; 32.32; Jr 30.2). A partir de então, cada escrito inspirado era reconhecido (testemunho interno do Espírito Santo?) por outros profetas. Daniel (9.2) reconheceu a autoridade dos escritos de Jeremias (25. 11, 12)23.  O mesmo aconteceu com o trato que Jeremias deu a Miquéias(Jr 26.18), que o precedeu 125 anos antes.24  Por volta de 435 a.C, já não mais havia acréscimo ao que ficou conhecido como “Tríplice Divisão”. Na literatura judaica após este período, estabelecido estava a certeza que não mais havia novas palavras dos profetas. Por exemplo, em 1Macabeus (9.27) se diz: “Israel caiu numa tribulação tão grande como não houvera desde que cessaram os profetas”.  Sabedoria de Ben Siraque, também conhecido como Eclesiástico (c. 200-180), já mostra que o Antigo Testamento encontrava-se organizado em “a Lei, os Profetas e os outros Escritores”(Prólogo. Cf. 49.8 -10; 44 – 50). O segundo livro de Macabeus (c. 104-64 a.C; 2.13) relata os livros sagrados já reconhecidos, entre eles as “Memórias de Neemias”, os “livros referentes aos reis e aos profetas, os escritos de Davi e as cartas dos reis sobre as oferendas”. Digno de nota é que, já no período cristão, não encontramos absolutamente nenhuma discussão entre Jesus e os Líderes Religiosos de Israel sobre a extensão do Cânon do Antigo Testamento. Antes, as referências às Divisões do Antigo Testamento são abundantes (Lc 24.44; Cf. Mt 5.17; Lc 16.16,17).  26

O mesmo pode ser dito Acerca do Novo Testamento. A comunidade cristã primitiva recebeu o Antigo Testamento como o temos hoje (Cf. Rm 3.2). Aqueles que foram comissionados por Cristo estavam cientes de que suas palavras eram revelação, a ponto de colocarem-na ao lado do Antigo Testamento. Segundo Vilhauer.27

O fato de que o cristianismo primitivo possui, desde o início, uma “Escritura Sagrada” no posteriormente assim chamado AT e que o usava, fornece critérios para o reconhecimento da canonicidade de um escrito cristão: um escrito cristão somente atingiu a categoria de uma ‘escritura sagrada’, portanto, validade canônica, quando é tratado do mesmo modo como o AT. Isso quer dizer, quando é usado como grafh,, e isso se revela no modo de citação. Portanto não já pelo simples fato de um escrito cristão ser citado tacitamente em outro escrito, e, sim, primeiro quando é citado, como o Antigo Testamento, como grafh, - por meio de fórmulas como le,gei h` grafh, (Gl 4.30), w`j kaqw.j ge,graptai (1Co 1.31; Rm 1.17, et passim), ou le,gei to. pneu/ma to. a[gion (Hb 3.7) – ele está no mesmo nível do AT, Sagrada Escritura, “canônico”.

Percebemos que o critério revelacional, ao invés do institucional, foi prioritário na aceitação de um corpus canônico neotestamentário. O reconhecimento Apostólico28,  à semelhança do reconhecimento profético, estava no fundamento para a autoridade do Novo Testamento. Tal como no Antigo Testamento, o Novo Testamento também fornece as indicações de sua canonicidade. Por exemplo, acerca das Cartas Paulinas, elas deveriam ser lidas publicamente nas igrejas. Em 1Tessalonicenses 5.27, Paulo “conjura” “pelo Senhor” que sua epístola fosse lida em todas as igrejas. Essa ordem só faria sentido dentro da concepção de que o que Paulo escrevia teria que ser considerado ensinamento do Senhor para a Igreja (Cf. Col 4.16). Com essa convicção, Paulo considerava que suas palavras eram aquelas que o “Espírito Santo” ensinava (1Co 2.13) de modo que suas instruções eram de autoridade divina. Diz o Apóstolo: “Se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor”(1Co 14. 37). Não por menos que a Igreja recebeu seus escritos como Palavra de Deus (1Tes 2.13; 2Tes 2.15) e que aqueles que não atentassem para suas Palavras, não deveriam ter associação com os Crentes. Diz ele: “Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai o tal, e não vos mistureis com ele, para que se envergonhe”(2Tes 3.14).

De igual modo, outros escritos apostólicos também foram colocados lado a lado com o Antigo Testamento. Assim fez Pedro, por exemplo, pondo as Cartas de Paulo29 ao lado das “demais Escrituras” que eram deturpadas pelos indoutos. Paulo também não tem o menor constrangimento ao ladear, chamando de Escritura, as palavras de Moisés junto ao Evangelho de Lucas (1Tm 5.18; Dt 25.4; Lc 10.7). De acordo com o argumento de Grudem: 30

Se aceitamos os argumentos favoráveis ao ponto de vista tradicional da autoria dos escritos neotestamentários, então a maior parte do Novo Testamento pertence ao cânon por causa da autoria direta dos apóstolos. Isso incluiria Mateus; João; Romanos a Filemon (todas as epístolas paulinas); Tiago; 1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; e Apocalipse.

Mas, não consta acima os Evangelhos de Marcos, Lucas, Atos, Hebreus e Judas. Ora, o que sabemos acerca de Jesus Cristo depende da palavra escrita nestes Evangelhos. A proximidade dos relatos nas narrativas é tanta que, a rejeição de um deles implicará a rejeição dos outros.31  Por exemplo, 606 dos 661 versículos de Marcos aparecem em Mateus. Dos 1068 versos de Mateus, cerca de 500 também se acham em Marcos. Há apenas 31 versos que estão em Marcos, mas não estão em Mateus e Lucas.32  A relação entre Lucas e Mateus e Marcos é também considerável. Mateus e Lucas possuem 250 versos em comum, sem qualquer paralelo com Marcos. Ou seja, Mateus e Lucas compartilham de informações que Marcos não possui. Lucas compartilha 380 versos com Marcos, embora com poucas variações. Se o Evangelho de Lucas é, então, aceito como canônico pela comunidade primitiva, o mesmo se deu com Atos, também escrito por Lucas. Além do mais, tais escritos não apostólicos circularam lado a lado com os Escritos Apostólicos, tendo, portanto, o testemunho pessoal dos Apóstolos para confirmação da autoridade divina dos livros. 33

Em tudo isso, verificamos que os Escritos Apostólicos, diferentemente dos Apócrifos, foram recebidos como um “corpo de verdade”, um “depósito”(1Tm 6.20, 21; 2Tm 2.14) ou, como diz o escritor Judas, “a fé que uma vez foi dada aos santos”(Jd 3), certamente pelos Apóstolos e Profetas, os Fundamentos da Igreja (Ef 2.20), de cujas palavras os Cristãos deveriam lembrarem-se (Jd 17).
Frederick F. Bruce,34  após exaustiva pesquisa sobre a formação do Cânon, escreveu: “Portanto, todas as reivindicações para transmitir uma  revelação adicional... são alegações falsas... se estas reivindicações são incorporadas nos livros que visam substituir ou completar a Bíblia, ou assumir a forma de extra-tradições bíblicas, tais reivindicações são proclamadas como dogmas pela autoridade eclesiástica”

E os outros escritos? Aplicação da abordagem pressuposicional do Cânon das Escrituras

Bom, alguém talvez possa objetar afirmando que o que foi escrito acima também possa ser aplicado aos Apócrifos (ou ao Corão, ou aos Vedas etc), visto que a Igreja Romana aceita os “deuterocanônicos”. No entanto, não foi se não em 1546, no Concílio de Trento, que a Igreja adotou tais livros oficialmente. Historicamente, alguns dos Pais aceitaram alguns Apócrifos do Novo Testamento. Por exemplo, a Epístola de Barnabé (c. 70-79 d.C), escrita por Clemente de Alexandria, faz parte do Códice Sinaítico, manuscrito do século IV. Ao mesmo tempo, escritos apostólicos tiveram sua autenticidade duvidada, como foi o caso de Hebreus, Tiago e Judas.

Não é que o testemunho histórico seja sem importância. Historicamente, os 27 livros do Novo Testamento já eram aceitos na comunidade pós-apostólica desde cedo. D. A. Carson35  diz que “os quatro evangelhos, Atos, as 13 epístolas paulinas, 1 Pedro e 1 João são universalmente aceitos já bem cedo; a maior parte do restante do cânon do Novo Testamento já está estabelecida à época de Eusébio (c. 260 – 340 d.C)”. Porém, a primeira lista a incluir apenas os 27 livros como o temos hoje, é datada de 367 d.C numa carta escrita por Atanásio à igreja de Alexandria. No Ocidente, o debate sobre a composição do Novo Testamento como o que temos hoje encerra-se no Terceiro Concílio de Cartago (397), tendo a presença de Agostinho.

A despeito disso, devemos sempre apelar para a autoridade final da Revelação. Os Protestantes, além dos fatores históricos, devem rejeitar os Apócrifos (AT/NT) com base na reivindicação da autoridade final, especialmente na coerência da revelação. Como exemplo, podemos contrastar as palavras de Paulo em Primeira Coríntios 14.37, 38; em Gálatas 1.8 com as palavras do autor de Segundo Macabeus. Enquanto Paulo diz “se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor”(1Co 14.37), o autor de Macabeus diz: “Assim terminou a história de Nicanor. Como desde esse tempo a cidade ficou em poder dos hebreus, eu também porei aqui o ponto final em nossa história. Se consegui deixá-la bem escrita e construída, isso é o que eu queria. Se saiu vulgar e medíocre, fiz o melhor que podia”(2Mc 15.37,38). Em outra ocasião, o próprio autor de Macabeus reconheceu que são “com textos da Lei e dos Profetas” que se devia exortar ao encorajamento (15.9). Tais escritos não foram recebidos pelos crentes da Antiga nem da Nova Aliança.

Sem contar os erros históricos, éticos e teológicos contidos em tais livros36 . Por exemplo, Tobias (c. 200 a.C) alega ter vivido quando da revolta de Jeroboão (c. 931 a.C) e a conquista de Israel pela Assíria (722 a.C), embora sua idade total, conforme registro, fosse de 158 anos (Cf. Tob 1.3-5; 14.11). De acordo com Judite, o rei da Assíria era Nabucodosor (Jud. 1.1, 7). Enquanto as Escrituras ensinam que Deus criou o mundo a partir do nada (Gn 1.1; Hb 6.3), o livro de Sabedoria ensina que havia matéria (7.17) e Segundo Macabeus ensina a oração pelos Mortos (12.45, 46).
Por fim, perceba no quadro abaixo a maneira correta de discutir o assunto: 37

Ideia Incorreta de Canonicidade - Ideia Correta de Canonicidade

A Igreja é a Determinadora do Cânon. - A Igreja é a Descobridora do Cânon.
A Igreja é a Mãe do Cânon. - A Igreja é a Filha do Cânon.
A Igreja é o Magistrado do Cânon. - A Igreja é a Ministra do Cânon.
A Igreja é a Reguladora do Cânon. - A Igreja é a Reconhecedora do Cânon.
A Igreja é o Juiz do Cânon. - A Igreja é a Testemunha do Cânon.
A Igreja é a Mestra do Cânon. - A Igreja é a Serva do Cânon.

Conclusão

Obviamente, questões outras são levantadas e passíveis de muitas discussões. Dentre elas, a do fechamento do Cânon e a se há ou não a possibilidade de novas revelações escritas.
Obviamente, questões outras são levantadas e passíveis de muitas discussões. Dentre elas, a do fechamento do Cânon e a se há ou não a possibilidade de novas revelações escritas.
Porém, talvez a mais contemporânea seja a desconfiança do Cânon como o temos hoje. Especialmente no ressurgimento dos escrito Gnóstico38  e por Críticas cinematográficas ao Cristianismo Tradicional ,39 mas não menos em segmentos que agora não se denominam mais como igrejas.40  No primeiro caso, a crítica é histórica, procurando compreender as razões que levaram ao Cristianismo a rejeitar os Gnósticos.41  Não é muito difícil reconhecer o motivo da rejeição dos Escritos Gnósticos. Mas que a questão retorna ao cenário, tal como nos primeiros séculos, como bem pode ser visto pelas obras polemistas do Dr. Bart Ehrman.42

O segundo caso, e para mim mais preocupante, é fruto do subjetivismo kierkegaardeano em nossa época. Por uma voz interior têm rejeitado completamente as palavras das Escrituras43 . Aliás, encontramos a formulação de um “cânon dentro do cânon”. Agora, os mais importantes são os Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e não as Cartas Paulinas ou mesmo o Antigo Testamento. Certo dia ouvi um líder de uma comunidade dizer: “Se o que Isaías ou Paulo dizem for contrário ao que Jesus Cristo diz, então fico com Cristo”.

Até parece extremamente piedoso, mas a implicação é que a Escritura, de Gênesis a Apocalipse, deve conter alguma contradição e, assim, não é ela toda revelação de Deus. Tal postura denunciaria, nas palavras de F.F. Bruce, 44 “uma incapacidade de apreciar o que realmente é o cânon [...]”. Além de criar duas realidades hermenêuticas: 1) a do próprio Cristo e; 2) a dos Apóstolos e Profetas. O resultado disso é a impressão de que os dois se contradizem, como se as Palavras dos Apóstolos e Profetas também não fossem as palavras de Cristo.45  Por exemplo, Pedro disse que sobre os Profetas estava o Espírito de Cristo (2Pd 1.10-12). O Evangelho de Paulo é o mesmo do de Cristo (Ef 3.1 – 11) e rejeitá-lo ou corrompê-lo é tornar-se anátema (Gl 1.8). Desse modo podia Jesus dizer que consultando Moisés, os Profetas e os Escritos, encontrar-se-ia o próprio Cristo, a vida eterna (Jo. 5.39). A promessa feita a Abraão é chamada de Evangelho (Gal 3. 6) e quem fez esta promessa foi a Escritura!

Para os neo-evangélicos, sempre que alguma coisa soar (leia-se as palavras dos Profetas ou Apóstolos) diferente do que supostamente Jesus falou,46  fica-se com o nível infalível (as palavras que concordam com Cristo) e rejeita-se o nível falível (as outras palavras). A conclusão seria: NEM toda ESCRITURA é DIVINAMENTE inspirada. E também: ALGUMAS profecias da Escritura SÃO de PARTICULAR INTERPRETAÇÃO (dos Profetas e Apóstolos).

A posição, portanto, é contraditória e perigosa. Assim, a implicação de tal postura é uma espécie de fideísmo. Porém, não temos Cristo sem Escritura; não temos Escritura sem Cristo. É Christus, Solus Christus EM Tota Scriptura, Sola Scriptura!

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=255

quarta-feira, abril 20, 2016

Editora Vida Nova: A relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas

O texto que segue é da Revista Teologia Brasileira.

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A relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas

O mundo ocidental vive um grande avanço científico. Não é necessário muito esforço para percebermos o quanto estamos ligados e somos influenciados pelo avanço nas áreas da física, da química, da biologia, da medicina, dentre outras.

As origens do moderno avanço das ciências naturais são um tanto complexas e controversas. Há, atualmente, teorias que se esforçam para apresentar um único fator que controla todo esse desenvolvimento científico. Todavia, tais teorias são tomadas pela grande maioria dos historiadores como ambiciosas e inconvincentes. Como afirmou Alister McGrath, teólogo e apologista inglês, tentar argumentar que a origem do grande desenvolvimento das ciências reside em apenas um fator ou pessoa é exagero e desonesto com a história.

Está claro que muitos são os fatores que contribuíram para o avanço das ciências modernas. Dentre eles está o fator religioso que, inquestionavelmente, esteve envolvido. E é dentro desse fator que João Calvino (1509-1564) se destaca tanto removendo obstáculos “religiosos” que impediam o avanço das ciências naturais quanto encorajando o estudo científico da natureza.

Sem dúvida, muitas são as origens do moderno avanço científico. E muitos estão plenamente convencidos de que Calvino teve um papel fundamental para que chegássemos àquilo que hoje se vê, ainda que, ele mesmo, não tenha atuado em nenhuma ciência natural.

Portanto, o foco deste artigo é analisar a estreita e intrínseca relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas.

CALVINO E O ENCORAJAMENTO AO ESTUDO CIENTÍFICO DA NATUREZA
UM ERRO HISTÓRICO

Como já dissemos, João Calvino foi um dos grandes fatores que ajudaram no desenvolvimento das ciências naturais. Além de remover grande parte dos obstáculos que impediam tal progresso, Calvino e seus seguidores foram grandes encorajadores do estudo científico sobre a natureza.

A imagem que hoje se tem de João Calvino infelizmente não corresponde a muitos dos fatos. A imagem de um homem que não dava margem a nada que não fosse intolerância e biblicismo tem sido passada de maneira pouco cuidadosa.

O professor R. Hooykaas, em sua obra A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, diz que o preconceito cegou os historiógrafos.1 É comumente aceito entre eruditos historiadores, como o professor R. Hooykaas da Universidade de Utrecht e Alister McGrath da Universidade de Oxford, que o polêmico livro de Andrew Dickson White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom (Londres, 1896) é responsável por boa parte da controvérsia atual.

McGrath, no prefácio de seu livro A life of John Calvin, diz que “nos últimos cem anos, a atitude de Calvino com relação à teoria heliocêntrica do sistema solar de Copérnico2 tem sido objeto de ridículo”.3 Andrew Dickson White, citado acima, escreveu:

Calvino assumiu a liderança em seu Comentário de Gênesis, condenando todos os que asseveram que a Terra não está no centro do universo. Ele decidia o assunto com sua habitual referência ao primeiro verso do Salmo 93, perguntando: ‘Quem ousará colocar a autoridade de Copérnico acima da do Espírito Santo?’4
White, por sua vez, copiou tal equívoco de declarações fictícias dos escritos de Frederick William Farrar5 (1831-1903), deão anglicano de Canterbury. A declaração de Farrar, repetida por White, tem sido amplamente repetida em livros, artigos e ensaios que tratam do tema “religião e ciência”, como Bertrand Russell em sua History of Western Philosophy.6  Apesar de essa lenda ser tão bem aceita, ela não passa de ficção, uma vez que João Calvino nunca mencionou tais palavras, nem jamais citou Copérnico em seus escritos conhecidos.

É um fato triste da história que Calvino tenha sido adulterado e distorcido tão grosseiramente. É lamentável que permaneça aceito que Calvino, e consequentemente o calvinismo, tenham sido hostis contra o desenvolvimento das ciências naturais. De fato, a história é bem diferente, como avaliaremos a seguir.

A HISTÓRIA NÃO CONTADA

O fato é que Calvino encorajou amplamente o estudo científico da natureza em seus dias. Não só ele, mas também seus discípulos mantiveram a mesma atitude nos anos que seguem à morte do reformador genebrino. Em suas Institutas, Calvino diz:

Inumeráveis são, tanto no céu quanto na terra, as evidências que lhe atestam a mirífica sabedoria. Não apenas aquelas coisas mais recônditas, a cuja penetrante observação se destinam a astronomia, a medicina e toda a ciência natural, senão também aquelas que saltam à vista a qualquer um, ainda o mais inculto e ignorante, de sorte que nem mesmo podem abrir os olhos e já se veem forçados a ser-lhes testemunhas.7
Calvino, portanto, aprova e confia, em certa medida, tanto na astronomia quanto na medicina. McGrath afirma que, de fato, Calvino confessa nessas palavras das Institutas certo tipo de ciúmes daquelas ciências naturais8 por serem capazes de provar de modo mais profundo (no mundo natural) o método e a regularidade da criação, além da sabedoria de seu Criador.

Sustenta-se, portanto, que Calvino deu um impulso religioso fundamental para a o desenvolvimento das ciências. Em seus dias, tais legitimações sobre a investigação da medicina e da astronomia desanuviou o caminho para o avanço científico.

É possível ver a influência de Calvino sobre seus discípulos no que tange ao encorajamento à pesquisa científica. A Confissão de Fé Belga (que, segundo McGrath,9 exerceu particular influência nos Países Baixos) foi grandemente influenciada pela teologia de Calvino. E foi nessa região, onde ela exerceu maior influência, que, coincidência ou não, produziu-se um número notável de físicos e botânicos. Nessa confissão de fé, no artigo 2 (Como conhecemos a Deus), lê-se assim:

... visto que o mundo, perante nossos olhos, é como um livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar ‘os atributos invisíveis de Deus’, isto é, ‘o seu eterno poder e a sua divindade’, como diz o apóstolo Paulo em Romanos 1.20: Todos estes atributos são suficientes para convencer os homens e torná-los indesculpáveis.10
Em outras palavras, Deus pode ser conhecido através de um estudo detalhado e minucioso de sua criação. E é impressionante, como já fora posto acima, a influência que esta confissão de fé teve sobre físicos e botânicos da região dos Países Baixos.

Em outras duas passagens das Institutas, Calvino aprofunda um pouco mais a questão. Ele mostra como toda a criação não passa de um grande teatro que nos serve para revelar a glória de Deus:

Portanto, por mais que ao homem, com sério propósito, convenha volver os olhos a considerar as obras de Deus, uma vez que foi colocado neste esplendíssimo teatro para que fosse seu espectador, todavia, para que fruísse maior proveito, convém-lhe, sobretudo, inclinar os ouvidos à Palavra.11

Entrementes, não hesitemos em colher piedoso deleite das obras de Deus manifestas e patentes neste formosíssimo teatro. Pois, como o dissemos em outro lugar, embora não seja a evidência primordial à fé, contudo na ordem da natureza esta é a primeira: para onde quer que volvamos os olhos em derredor, devemos ter em mente que todas as coisas que nossos olhos divisam são obras de Deus, e ao mesmo tempo devemos refletir, em piedosa consideração, a que fim foram por Deus criadas.12
Nestes textos, Calvino claramente sugere que toda a natureza se posta ante os seres humanos como um formosíssimo teatro, ou, um teatro da glória de Deus. A humanidade é quem aprecia esse teatro, e o estuda também.

O professor Alister McGrath, da Universidade de Oxford, afirma que estas ideias foram tomadas com grande entusiasmo pela Royal Society, a organização mais importante devotada ao avanço da pesquisa e ensino científicos na Inglaterra. Segundo McGrath, muitos de seus primeiros membros foram admiradores de João Calvino, familiarizados com seus escritos e sua relevância para os campos de estudo daqueles.13

Interessante como o próprio Sir Isaac Newton (1643-1727), cientista inglês, mais reconhecido como físico e matemático, embora tenha sido também astrônomo, alquimista, filósofo natural e teólogo, em sua correspondência com Richard Bentley (1662-1742) escreva sobre sua alegria em poder demonstrar evidência de design na regularidade do universo em sua obra de 1687, Principia Mathematica. Segundo McGrath, há nessas cartas claras alusões à referência de Calvino ao universo como “teatro da glória de Deus” onde todos nós podemos, como audiência, apreciá-lo e aprender dele.14

O que se percebe lendo Calvino e aqueles que por ele foram influenciados é que, o estudo de toda a criação, seja por meio da medicina, ou da astronomia, ou da botânica, etc., conduz a humanidade a um aumento consciente da sabedoria daquele que criou todas as coisas visíveis e invisíveis.

Na visão do Dr. Abraham Kuyper (1837-1920),15 homem profundamente familiarizado com os escritos de João Calvino, o calvinismo não pôde fazer outra coisa na história ‘senão encorajar o amor pela ciência’.16 Portanto, Calvino não só encorajou e legitimou a busca pelo conhecimento da sabedoria do Criador através das pesquisas científicas feitas pelos estudiosos das ciências naturais, como também eliminou muitos obstáculos dentro da própria religião que obstruíam tal avanço.

CALVINO E A REMOÇÃO DOS OBSTÁCULOS QUE
IMPEDIAM O DESENVOLVIMENTO DAS CIÊNCIAS NATURAIS
A “GRAÇA COMUM” E A LUZ DA CIÊNCIA SOBRE OS PAGÃOS

Indubitavelmente, além de encorajar o desenvolvimento das ciências naturais, João Calvino buscou remover muitos obstáculos que impediam o avanço das pesquisas culturais em seus dias. Seu conceito a respeito da graça comum ajudou a esclarecer muitas coisas além de remover outras que impediam o avanço do conhecimento.

Para ele, o Espírito Santo exercia influência comum sobre os homens em geral. A isso ele chamava de graça comum. Diante de eleitos e réprobos, Deus exercia uma atitude favorável que se observa nas concessões necessária à sobrevivência (chuva, sol, alimento, abrigo, etc.) a todos. Assim ele diz nas Institutas:

Quantas vezes, pois, entramos em contato com escritores profanos, somos advertidos por essa luz da verdade que neles esplende admirável, de que a mente do homem, quanto possível decaída e pervertida de sua integridade, no entanto é ainda agora vestida e adornada de excelentes dons divinos. Se reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria verdade, onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus.17
João Calvino foi um humanista extremamente talentoso e realista. Por conta disso, o professor R. Hooykaas argumenta que Calvino jamais diria que a Queda teria “levado o homem a uma total depravação no campo científico”.18 Ao contrário, Calvino via a graça comum de Deus sobre os pagãos manifestando-se no fato de que Deus concede dons a eles e assim os capacita a encontrar a verdade em suas pesquisas e escritos científicos.

Segundo o professor Hermisten M. P. da Costa, “Calvino dispunha de uma visão ampla da cultura, entendendo que Deus é Senhor de todas as coisas; por isso, toda verdade é verdade de Deus”.19 Para Costa, era sobre o conceito da graça comum, ou graça geral, que essa perspectiva de Deus sobre os pagãos se ampara.

Em seu comentário do livro de Gênesis, Calvino expõe claramente a graça comum. Ao mostrar Deus dando dons à amaldiçoada descendência de Caim (comentário de Gn 4), Calvino diz: “verdadeiramente é maravilhoso que esta raça que tinha caído profundamente de sua integridade superaria o resto da posteridade de Adão com raros dons”.20 O texto que Calvino comenta é o seguinte:

E Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e possuem gado. O nome do seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. A Zila também nasceu um filho, Tubal-Caim, fabricante de todo instrumento cortante de cobre e de ferro; e a irmã de Tubal-Caim foi Naama. (Gn 4.20-22)21
De modo que, para Calvino, foi a graça (comum) de Deus que permitiu a invenção das artes e de outras coisas úteis para a vida presente. Contudo, embora Calvino visse a graça de Deus sobre pagãos sendo derramada com a finalidade de que estes tivessem habilidades para criar e também para descobrir cientificamente detalhes da criação, de longe o Livro Sagrado preocupava-se em ser um repositório de informações científicas. Hooykaas cita o comentário de Calvino ao texto de Gênesis 1.15: “A Bíblia era, portanto, um ‘livro para leigos’”; “aquele que desejasse aprender astronomia, ou outras artes recônditas, que fosse a outros lugares”.22

Com isso em mente, Calvino desafiou a muitos dentro da própria igreja que tinham a Bíblia como um verdadeiro livro-texto sobre ciências. Ele removeu tal ideia provando ser a Bíblia um livro que não se preocupava com ciências naturais, mas com o conhecimento de Jesus Cristo.

A BÍBLIA NÃO É UM REPOSITÓRIO DE CIÊNCIAS NATURAIS

Quando afirmamos que João Calvino contribuiu grandemente para o desenvolvimento das ciências modernas, assim fazemos pelo fato de ele ter lidado de maneira honesta com o literalismo bíblico. Até então ensinava-se a olhar para as Escrituras como um livro científico (além de religioso). Cria-se que a Bíblia tratava de detalhes da estrutura do universo, de modo que homens como Copérnico e Galileu, com suas teorias heliocêntricas, tiveram, em princípio, grandes problemas.

A Igreja Católica Apostólica Romana ainda controlava a produção cultural e científica e defendia a teoria do geocentrismo (a Terra como centro do Universo). Galileu Galilei foi condenado pelo Santo Ofício por defender o heliocentrismo. Pouco antes de ser queimado na fogueira da Inquisição, negou essa teoria diante do tribunal tão somente para livrar-se de ser queimado, porém nunca deixou de acreditar nela nem de pesquisá-la.

O grande problema de muitos que hoje lidam com o tema “religião e ciência” ainda reside no fato de querer encontrar na Bíblia um verdadeiro repositório de livros-texto sobre astronomia, geografia ou biologia.23 A ênfase de João Calvino era de que a Bíblia trata fundamentalmente do conhecimento de Jesus Cristo.

Alister McGrath comenta as palavras de Calvino no prefácio da tradução do Novo Testamento de Pierre Olivétan (1543), onde, segundo McGrath, Calvino remove o conceito, até então normal, de a Bíblia ser um repositório científico. Calvino disse em tal prefácio:

O ponto principal das Escrituras é trazer-nos a um conhecimento de Jesus Cristo... As Escrituras nos proveem com um espetáculo, através do qual nós podemos ver o mundo como a criação de Deus e sua autoexpressão; elas jamais pretenderam prover-nos com um repositório infalível de informações astronômicas e médicas.24
É deste modo que Calvino lança luz sobre uma opção melhor de interpretação das Escrituras. Não mais olhar para a Bíblia como um livro que se preocupa com a infalibilidade em assuntos geográficos, físicos, químicos, botânicos, astronômicos, dentre outros, mas como um livro que se preocupa em aumentar nosso conhecimento de quem é Jesus Cristo, o Deus-Filho. A Bíblia, na visão de João Calvino, quando cita algo relacionado hoje ao estudo das ciências naturais, o cita de forma acomodativa, dentro dos limites do conhecimento de então. É a isso que se chama de Teoria da Acomodação.

A TEORIA DA ACOMODAÇÃO

Calvino insistiu que nem tudo o que a Bíblia diz sobre Deus ou sobre o mundo deve ser tomado literalmente. De acordo com McGrath, Calvino desenvolveu uma sofisticada teoria relacionada sempre com o termo “acomodação”.25 A palavra “acomodação” aqui significa “ajustar ou adaptar a fim de encontrar as necessidades da situação e da habilidade humana para compreendê-lo”. Alister McGrath diz que “Deus pinta um quadro de si mesmo que nós somos capazes de entender”.26
Em outra obra, McGrath diz que a teoria da acomodação, de Calvino, resume-se em:

Deus, ao se revelar a nós, acomodou-se aos nossos níveis de entendimento e às nossas preferências naturais por meios ilustrativos de compreendê-lo. Deus se revela, não como ele é em si mesmo, mas em formas adaptadas à nossa capacidade humana. Assim, a Bíblia fala de Deus tendo braços, boca, e assim por diante – mas essas são apenas metáforas vivas e memoráveis, apropriadas de maneira ideal às nossas habilidades intelectuais. Deus se revela de formas adequadas, convenientes às habilidades e situações daqueles para quem a revelação foi originalmente dada.27
Nessas palavras, McGrath sintetiza o pensamento de Calvino sobre a maneira como Deus escolheu para se revelar aos homens: uma linguagem acomodada à ciência de então. Não uma linguagem cientificamente exata, mas, como já dito, adaptada.

Ao analisarmos outras fontes percebemos o quanto isso influenciou cientistas dos séculos XVI e XVII. O professor Hooykaas, em A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, argumenta como a teoria da acomodação, de Calvino, influenciou seguidores de Copérnico nos países protestantes. Tais homens eram astrônomos, preocupados com o desenvolvimento da teoria do heliocentrismo, condenada pela igreja romana de então.

O escritor inglês Edward Wright (1558?-1615), ao prefaciar De Magnete, de William Gilbert (1600), utilizou argumentos que vêm diretamente de João Calvino. Naquele prefácio, Wright defende a teoria heliocêntrica afirmando que ela, ao contrário do que se dizia em meios eclesiásticos, não se chocava em ponto algum com as Escrituras Sagradas. No já referido texto, Wright usa a teoria da acomodação, de Calvino, para argumentar contra os literalistas bíblicos que levantavam objeções contra sua teoria. Seu argumento, segundo Hooykaas, foi dizer que “nem Moisés, nem os profetas, tiveram a intenção de divulgar sutilezas físicas e matemáticas e, portanto, não entraram em minúcias supérfluas”.28  Wright escreveu: “Moisés acomodou-se ao entendimento e à maneira de falar das pessoas comuns, como fazem as amas com as criancinhas”.29  Essa é a mesma figura usada por João Calvino ao expor o versículo 7 do salmo 136. Lá, Calvino diz que:

O Espírito Santo não possuía intenção alguma de ensinar astronomia... O Espírito Santo escolhe se adaptar e se comunicar conosco como que balbuciando, ao invés de bloquear o caminho do conhecimento às pessoas rudes e incultas.30
Tanto João Calvino como seus discípulos defenderam a teoria da acomodação que, usando de linguagem simples para falar a um povo simples, permitiu-se a alguns erros vulgares.31 Tais erros foram permitidos com o fim de o Espírito transmitir sua mensagem espiritual para o povo. É a isso que Calvino chama de balbuciar do Espírito.

Wright foi, sem dúvida alguma, influenciado por Calvino. Por isso, escreve de modo tão semelhante a ele quando trata do balbuciar do Espírito. Ninguém é capaz de negar o quanto João Calvino influenciou pessoas em seus dias com a teoria da acomodação. Sua mudança de foco na interpretação da Bíblia Sagrada incentivou grande número de cientistas à pesquisa, sobretudo nos países protestantes.

Outro astrônomo famoso, também calvinista convicto, foi Philips van Lansbergen (1561-1632). Lansbergen foi, também, um ministro protestante. Ele foi ‘o mais zeloso propagador do copernicanismo nos Países Baixos’.32 Hooykaas, citando um comentário do próprio van Lansbergen da epístola de Paulo a Timóteo em 2Tm 3.16, escreve que a Bíblia não fala sobre assuntos astronômicos:

...segundo a situação real, mas segundo as aparências... A Escritura foi-nos outorgada por inspiração de Deus, e deve ser usada para doutrina, exprobração, correção, e para o exercício da probidade, mas não é própria para o ensino da geometria e da astronomia.33
Outro grande nome na história da ciência é o de Johannes Kepler. Kepler foi um adepto de Copérnico. Teve por mestre Michael Mastlin, um teólogo-astrônomo. Em certa altura de sua vida, Kepler foi acusado de ser cripto-calvinista. E é nesse momento que o vemos citando Calvino. Em sua obra Astronomia Nova (1609), logo na introdução, Kepler lembra muito Calvino ao dizer:

As Sagradas Escrituras falam sobre coisas comuns (no ensino daquilo para o qual elas não foram instituídas) a criaturas humanas, numa maneira humana, para que possam ser compreendidas pela humanidade; elas usam o que geralmente é reconhecido pelas pessoas, a fim de fazê-las entender outras coisas, mais elevadas e divinas.34
De modo que aqui, mais uma vez, se constata os efeitos libertadores dos escritos de João Calvino. Ele realmente removeu obstáculos para o desenvolvimento das ciências modernas. Não fosse a honestidade de Calvino, sem falar de toda a sua dedicação em buscar no texto bíblico o seu real significado, possivelmente ainda hoje estaríamos todos em muitas trevas de ignorância. Embora Calvino não estivesse tão preocupado com o avanço do conhecimento científico quanto com o avanço do conhecimento de Jesus Cristo, é inegável e, por que não falarmos irrefutável, a preciosidade da contribuição de João Calvino para o desenvolvimento das ciências modernas. Tal ênfase de Calvino pode ser percebida na citação do professor Hermisten Costa em seu livro Calvino de A a Z.35 Neste livro (no verbete ciência), Costa faz menção às palavras de Calvino ao comentar o texto bíblico de 1Corintios 1.20 “Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo?”.36 No comentário desse texto Calvino diz: “O conhecimento de todas as ciências não passa de fumaça quando separado da ciência celestial de Cristo”.37

Portanto, para o reformador genebrino que, segundo Thea B. Van Halsema, fora um homem humilde que viveu sob o lema Soli Deo Gloria,38 nada se compararia ao estudo e ciência de quem foi e é Jesus Cristo. Todavia, seus olhos não estavam fechados para o que acontecia em seu tempo. E foi sua honestidade e acuidade em lidar com as Escrituras Sagradas que permitiram-lhe ser um dos muitos fatores que contribuíram para o desenvolvimento das ciências modernas, eliminando um obstáculo significativo ao avanço das ciências naturais: o literalismo bíblico.

CONCLUSÃO

Podemos concluir afirmando que, na relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas, há elos muito próximos e intrínsecos. Costa afirma que “a visão teológica de Calvino permeada pela soberania de Deus, fez com que ele procurasse relacionar a aplicação desta soberania às diversas atividades culturais do ser humano”,39 ou seja, Calvino entendia que as ciências e as humanidades deveriam ser usadas para a glória de Deus.

Mesmo a despeito de tantos erros de historiadores, ainda hoje se pode constatar em fontes primárias o quanto João Calvino encorajou o desenvolvimento das ciências naturais em seus dias. A influência de Calvino é impressionante. Como avaliações após avaliações indicam, tanto as ciências físicas quanto as biológicas foram dominadas por calvinistas durante os séculos dezesseis e dezessete.40 Isso se deve aos obstáculos removidos por João Calvino em suas Institutas da Religião Cristã, em seus comentários dos livros da Bíblia, em seus sermões, em suas correspondências e em prefácios escritos por ele.

De fato, Calvino encorajou o avanço das pesquisas científicas e permaneceu tal como um espectador “ciumento”, atento às descobertas de cientistas da astronomia e da medicina, como alguém que desejava conhecer a sabedoria do Criador por meio dos dons dados por ele, ainda que para homens ímpios (graça comum). Mas não só encorajou, removeu obstáculos que impediam tal avanço. De modo brilhante e inédito quebrou paradigmas, lançou luz sobre as Escrituras e nisso também influenciou uma avalanche de pesquisadores em alguns países na Europa.

Alister McGrath faz uma boa reflexão sobre como seria hoje se Calvino ainda tivesse tanta influência sobre o debate religião e ciências. O fato é que, desde o século dezenove, esses dois tópicos têm travado uma batalha mortal. Dentro de nossa cultura ocidental, alguns escritores desonestos e desinformados têm atribuído a Calvino e seus seguidores a culpa por tal dilema, quando, na verdade, para Calvino não existia dilema algum. Esta especulação de McGrath sobre como seria o debate evolucionista se hoje Calvino ainda tivesse grande influência, não passa de um mero raciocínio abstrato. De fato, o que hoje sabemos e podemos afirmar é que as ideias e influência de João Calvino exerceram um grande impulso religioso que resultou na rápida expansão das ciências naturais nos séculos dezesseis e seguintes.

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=350

terça-feira, abril 19, 2016

Editora Vida Nova: A religião pura e sem mácula

O texto que segue é da Revista Teologia Brasileira.

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A reforma protestante e a assistência social

Introdução

Cada geração de cristãos deve ter o firme compromisso de fundamentar sua fé somente na Palavra de Deus – “a igreja reformada deve estar sempre se reformando”, isto é, sempre voltando às Escrituras Sagradas como única revelação que a igreja deve seguir. Esse princípio ensina que a igreja não deve ficar inventando novidades, mas deve pregar e ensinar tão somente o puro e claro evangelho de Cristo conforme revelado nas Escrituras. No dia 31 de outubro, celebramos a data em que em 1517 se diz que Martinho Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo, em Wittenberg, suas famosas Noventa e Cinco Teses, começando a Reforma protestante. Esse movimento de retorno às Escrituras, entretanto, não se restringiu apenas à Alemanha. E seu impacto também não se restringiu a questões teológicas dissociadas da realidade, mas buscou de igual forma responder aos grandes problemas sociais da época.

I. Martinho Lutero

Martinho Lutero (1483-1546) esforçou-se para diminuir o abismo entre a fé salvadora e a ação social.2  O desejo de agir em prol dos necessitados apareceu resumidamente nas Noventa e Cinco Teses, nas quais Lutero argumentou que é melhor dar aos pobres e emprestar aos necessitados que comprar indulgências: “Deve se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências” (tese 43). Essa medida serviu para providenciar uma verba para o sustento dos pobres e ao mesmo tempo estimular o envolvimento da população na assistência social em Wittenberg.

Para Lutero, o cristão justificado torna-se livre para poder, por meio da fé, levar uma vida de serviço decorrente do amor a Deus. A ação social é decorrente de uma mudança baseada na liberdade da justificação pela graça por meio da fé. O resultado será um novo compromisso moral com a sociedade, à medida que os necessitados sejam amparados.

Sobre o papel dos pastores na transformação social, em sua Prédica para Que se Mandem os Filhos à Escola, ele escreveu:

[O pregador atua] em favor das almas, livrando-as do pecado, da morte e do diabo. No entanto, ele também realiza tão somente grandes e imponentes obras em favor do mundo: ensina e instrui todas as categorias sociais como se devem conduzir exteriormente em seus cargos e posições, para agirem com justiça perante Deus. Pode consolar os tristes, aconselhar, intermediar em casos de conflito, reconciliar consciências confusas, ajudar a manter a paz, a reconciliar, a viver em harmonia e inúmeras obras mais diariamente. Pois um pregador confirma, fortalece e ajuda a preservar a autoridade, toda a paz secular, resiste aos sediciosos, ensina obediência, bons costumes, disciplina e honra; instrui pai, mãe, filhos, empregados, em suma, a cada qual em sua função e estado secular. (...) Para dizer a verdade, a paz temporal (...) é, no fundo, um fruto do ministério da pregação.

Para Lutero, o cristão deve viver de maneira que seu amor por Deus seja espontâneo, não visando a qualquer recompensa material ou espiritual, mas simplesmente com o objetivo de fazer a vontade de Deus, pois a vida cristã consiste “em tudo querer o que Deus quer, buscar a glória de Deus e nada desejar para si, pois é no cuidado pelos mais fracos e desamparados que Deus é glorificado”.

II. Filipe Melâncton

Um dos mais importantes amigos e colaboradores de Lutero foi Filipe Melâncton (1497-1560).3  Esse erudito lançou os fundamentos da escola elementar popular. O que guiava sua perspectiva do ensino era que “alguns não ensinam absolutamente nada das Sagradas Escrituras; alguns não ensinam às crianças nada além das Sagradas Escrituras; ambos os quais não se deve tolerar”.

Em 1528, seus Artigos de Visitação para as escolas foram promulgados como lei na Saxônia, e sua obra como educador público passou a ser uma dimensão adicional em sua vida. Ele propôs a organização dos estudantes em três classes, divididas em faixas etárias. Na primeira divisão, as crianças estudavam o alfabeto, a oração do Pai-Nosso e o Credo dos Apóstolos. Na segunda divisão, eram estudados pelos adolescentes o Decálogo, o Credo e o Pai- Nosso. Os salmos mais fáceis – 112, 34, 128, 125, 133 – deveriam ser decorados, assim como deveriam ser estudados o evangelho de Mateus, as epístolas de Paulo a Timóteo, a primeira epístola de João e os Provérbios de Salomão. Tudo isto lado a lado com o estudo de física, lógica, gramática, moral e história. No último nível, o equivalente à faculdade, os estudantes deveriam se dedicar ao latim, gramática, dialética, retórica, filosofia, matemática, física e ética. Aqueles que estavam sendo preparados para ensinar na igreja, além destas matérias deveriam aprender o grego e o hebraico, pois em seu entendimento, este conhecimento deveria servir ao estudo e pregação de um evangelho puro.

Melanchthon entendia que Cristo tinha colocado toda a cultura sob seu controle, acreditando que este entendimento impediria os cristãos de viverem vidas grosseiras, enquanto, ao mesmo tempo, os impedia de atribuir mais importância à cultura humana do que à fé cristã. O estudo das letras estava sempre subordinado ao estudo das Escrituras Sagradas, mas ele disse: “Aplico-me a uma coisa, a defesa das letras. Convém que com o nosso exemplo se inflame a mocidade de admiração pelas letras, e que as ame por amor delas, e não pelo proveito que delas possa tirar. A ruína das letras traz consigo a desolação de tudo o que é bom: a religião, os costumes, coisas divinas e coisas humanas. Quanto melhor é um homem, tanto maior é o ardor que tem por salvar as letras; porquanto sabe que das pestes a mais perniciosa é a ignorância. Uma escuridão terrível cairá em nossa sociedade, se o estudo das ciências for negligenciado”. Este ensino abrangente tinha por objetivo tornar os cristãos ativos no mundo, dissipando as trevas de uma fé corrompida e supersticiosa e da ignorância.

Melanchthon também foi considerado o fundador do ensino patrocinado e sustentado pelo Estado. Pelo menos cinquenta e seis cidades procuraram sua ajuda na reforma de suas escolas. Ele ajudou a reformar oito universidades e a fundar outras quatro. Escreveu numerosos livros didáticos para uso nas escolas e, mais tarde, foi chamado o “instrutor da Alemanha” (Preceptor Germaniae).

III. João Calvino

O francês João Calvino (1509-1564) foi o reformador da Igreja de Genebra, na Suíça, e a ação social também estava entre as suas principais preocupações.4 Ele sustentava que em Cristo Jesus não haveria mais escravos nem livres, pois o Senhor aboliu todas as divisões de classes. Isso significa que o cristão vive a fé autêntica quando encontra seus irmãos numa fraternidade que exclui a discriminação social. Calvino jamais estabeleceu uma conexão entre riqueza ou pobreza de um lado e o favor ou desfavor de Deus de outro. Antes, ele entendeu a riqueza e a pobreza como expressões do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comunidade, que então deveria redistribuir livremente os seus recursos com vistas ao bem comum: “Por que é então que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?”

De acordo com André Biéler, Calvino ensinava que “somos todos ricos em relação a alguém. O rico tem uma missão econômica de providenciar ao mais pobre parte de sua riqueza, de tal maneira que o pobre deixa de ser pobre e ele mesmo deixe de ser rico”. Esta igualdade pregada pelo reformador tem como objetivo levar os membros do corpo de Cristo à restauração social do mundo, uma vez que, pela fé, o crente em Cristo sendo restaurado à imagem de Deus reconstitui suas relações com seu próximo. Calvino ensinou que Cristo estabelece entre os membros de seu corpo uma comunhão espiritual tão intensa que esta faz com que os cristãos supram as necessidades uns dos outros. Conforme Calvino: “A vontade de Deus é que haja tal analogia e igualdade entre nós. Cada um socorra os indigentes na medida de suas possibilidades, a fim de que alguns não sofram necessidades enquanto outros têm em supérflua abundância”.

Calvino considerava os negócios como uma forma legítima de servir a Deus e de trabalhar para a sua glória. Ele via a circulação de dinheiro e os bens e serviços como uma forma concreta da comunhão dos santos, e defendia que aqueles que se envolviam em negócios deveriam ter como objetivo ajudar os pobres e os ricos. Ele pensava que seria bom restaurar o ano do jubileu – uma redistribuição voluntária periódica da riqueza, de modo que a brecha social nunca se tornasse permanente. Em um sermão, ele disse: “Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos repartam.”

Biéler cita “um excelente texto do reformador,” que resume o pensamento social de Calvino:

É necessário começar por saber qual a atitude que o Senhor deseja que tenhamos diante dos bens materiais: quais os meios lícitos de ganhá-los e qual o seu uso adequado e legítimo;

Em primeiro lugar, não devemos buscar os bens terrenos por cobiça. Se vivermos na pobreza, devemos suportá-la pacientemente; se tivermos riquezas, não devemos nos prender a elas nem confiar nelas, devendo estar dispostos a renunciá-las se isso convier a Deus. Tanto o possuir como o não possuir devem ser indiferentes e sem maior valor, considerando a bênção de Deus como maior do que todas as coisas, buscando o reino espiritual de Jesus Cristo sem nos envolvermos em ambições iníquas;

Em segundo lugar, trabalhemos honestamente para ganhar a vida. Recebamos nossos lucros como vindos das mãos de Deus. Não usemos de má fé para nos apossarmos dos bens dos outros, mas sirvamos ao próximo com consciência limpa. Que o fruto de nosso trabalho seja o salário justo. Ao vender e ao comprar não usemos de fraude, astúcia ou mentira. Apliquemos ao nosso trabalho a mesma honestidade e lealdade que esperamos dos outros;

Finalmente, quem nada possui não deixe de render graças a Deus e de comer seu pão com alegria. Quem muito possui não use de glutonaria, de luxo, de orgulho e de vaidade, gastando dinheiro com coisas supérfluas; antes, seja em tudo moderado, e empregue seus bens em ajudar e socorrer o próximo, reconhecendo-se como quem recebeu seus bens de Deus e que deles há de um dia prestar contas. Devemos nos lembrar que o que tem em abundância use apenas o necessário para que o que nada tem não fique privado;

Em resumo, assim como Jesus Cristo deu-se por nós, também comuniquemos ao próximo, com amor, as graças que recebemos, ajudando-o na sua pobreza e socorrendo-o na sua miséria. Isto é o que nos cabe fazer.5

Na prática, os pastores em Genebra intercediam diante do Conselho da cidade em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de salário para os trabalhadores. Os pastores genebrinos pregavam contra a especulação financeira e fiscalizavam parcialmente os preços contra altas abusivas. Sob a influência dos pastores, o Conselho limitou a jornada de trabalho dos operários. A ociosidade foi proibida por leis: os estrangeiros que não tivessem meios de conseguir trabalho deveriam deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os desocupados da cidade deveriam aprender um ofício e trabalhar, sob a ameaça de serem presos, se assim não fizessem. O Conselho instituiu cursos profissionalizantes para os vadios e os jovens, para que eles pudessem entrar no mercado de trabalho.6

Conclusão

Nosso atual cenário político é marcado por gastos públicos incontroláveis, aparelhamento das estatais e órgãos públicos onde o Estado é colocado a serviço de um partido, corrupção desenfreada, sistemática desmoralização dos poderes e instituições, ações sociais inefetivas, além dos inquietantes sinais de instabilidade política na América Latina. Diante disto, precisamos perguntar em que sentido a teologia social dos reformadores pode nos ajudar hoje, aqui e agora, no Brasil. Como decorrência de tal herança, a igreja evangélica (especialmente os reformados) deveria se envolver em todos estes aspectos da sociedade, “usando os meios apropriados, lícitos e legais para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos opressores e os pobres preguiçosos, e exercitando obras de misericórdia e assistência social através de uma diaconia treinada e motivada. Todo esse envolvimento social deve acontecer sem perder de vista que a missão primordial da Igreja é promover a reforma (parcial e provisória) da sociedade através da proclamação do evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita a plena justiça de Deus.”7

A assistência social tem um lugar importante na vida cristã. É um dever do cristão se engajar nas esferas políticas para influenciar o Estado, para lutar e estabelecer instituições e estruturas mais justas. Mesmo assim, não podemos colocar nossa confiança em sistemas econômicos e ideológicos. É necessário enfatizar que qualquer sistema de governo somente é tão bom quanto o são os homens e mulheres que governam. Por isso, e esta é outra lição que poderemos aprender com os reformadores, não se deve centralizar o poder nas mãos de algumas poucas pessoas, mas dividi-lo entre poderes claramente separados e equilibrados, e entre o maior número possível de pessoas. E os governantes devem sempre prestar contas ao povo, que tem o direito e o dever de afastar os injustos e corruptos do poder.8

Que Deus nos dê coragem de viver e morrer pela e na fé evangélica. Que oremos como Martinho Lutero: “Eterno Deus e Pai do Nosso Senhor Jesus Cristo, dá-nos o teu Espírito Santo que escreve a Palavra pregada em nossos corações. Que nós recebamos e creiamos no teu Espírito para sermos regozijados e confortados por Ele na eternidade. Glorifica a tua palavra em nossos corações e faz com que ela seja tão brilhante e candente que nós achemos prazer nela, e através do teu Espírito Santo, pensar o que é certo, e pelo teu poder cumprir a tua Palavra por amor de Jesus Cristo, teu Filho, Nosso Senhor. Amém!”

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=411

segunda-feira, abril 18, 2016

Editora Vida Nova: Lutero, a morte e o Post Mortem: Ars moriendi protestante-uma breve introdução

O texto que segue é da Revista Teologia Brasileira.

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Lutero, a morte e o Post Mortem: Ars moriendi protestante-uma breve introdução

Ao receber o convite para escrever sobre o tema desta edição da revista1, senti uma mórbida felicidade para a pesquisa. Sendo eu de uma tradição calvinista, quando tive mais contato com a teologia de Lutero, levantei algumas suspeitas da diferente concepção do reformador sobre a morte e do que viria após o traspasse desta vida.2 Aliado a isso, meu objetivo foi também tentar traçar os pontos de divergência e convergência entre Lutero e Calvino. No entanto, a ênfase recairá, neste breve artigo, sobre o pensamento de Lutero. Logo, este trabalho descreve, de forma sucinta, questões históricas, teológicas e práticas da reflexão do reformador sobre a morte.  Portanto, o que vem a seguir, mais do que um artigo solicitado, é um tema de curiosidade pessoal e descoberta. Espero que seja uma boa e consoladora introdução na “Ars Moriendi” (a arte de morrer) à luz do recém-nascido protestantismo.

A morte e o destino póstumo sempre agitaram a mente e a fantasia humana. Ora, negando-os, ora aceitando-os resignadamente ou até desejando-os. Tantas são as pessoas, assim também as cosmovisões, os medos e as esperanças.  Desde as épocas mais remotas até o nosso mundo contemporâneo, a morte e sua irmã gêmea – a vida post mortem - estão presentes. A banda de rock inglesa surgida na segunda metade da década de 1990, Coldplay, tem lançado “hits” em seus álbuns que remetem à morte: “Viva la Vida or Death and All His Friends” (Viva a Vida ou a Morte e Todos Seus Amigos), "Cemeteries of London" (Cemitérios de Londres) e assim também o mais recente sucesso “Paradise” (Paraíso). As ideias de dor e esperança, desilusão e sonho, reencontrar depois de perder, vida e morte são facilmente identificadas.

A morte na Idade Média e a Reforma Protestante

O “Sitz im Leben” de Lutero se dá sob a forte visão medieval da morte. O quadro de Master E. S. (1420–1468) “Versuchung im Glauben” (tentações na fé) capta bem essa imagem. Segundo Ricardo W. Rieth,
A educação cristã e o aconselhamento pastoral no final da Idade Média – e mesmo antes – eram pautados em boa medida pela alternância entre ameaça e consolo. A arte sacra corroborava essa perspectiva, como pode ser visto em inúmeras obras retratando a morte, o purgatório, o juízo final, o céu e o inferno como estados da alma, descritos através das mais variadas expressões faciais.3
Ao lado das epidemias, da curta expectativa de vida, o medo da morte era ampliado, e como uma fera faminta, só podia ser domada pelo papado – mas, no além. Na época existiam, inclusive, mapas topográficos dos vários locais intermediários para onde as almas iam após a morte.4 A doutrina do “Zwischenzustand” (estado intermediário) é radicalmente afetada pela Teologia Protestante.

Lutero e o “slogan” da Sola Scriptura

É interessante observar que o reformador alemão, com a sua vigorosa volta às Escrituras, provocou reações de esperança tanto entre os cristãos quanto no povo judeu5, alguns dos quais chegaram ao excesso apocalíptico:
Lutero seria um cripto-israelita que ira reconduzir outros à lei mosaica. Os fenômenos de iconoclastia, os estudos hebraicos de Lutero e de seus adeptos, assim como os golpes lançados à instituição romana, seriam igualmente sinais messiânicos. Outros judeus não iam tão longe assim, contentando-se em realçar tudo aquilo que aproximava o cristianismo reformado por Lutero do judaísmo.6
Em que se pese essa aproximação, Lutero no seu “Comentário sobre profetas menores (1524-26)” combatia as tradições judaicas lançando “o Talmude no mesmo saco que as decretais papais e o Alcorão.”7 O emblema da “Sola Scriptura”, se por um lado aproximava judeus e cristãos, por outro, novamente dividia. A Escritura, sozinha, deve permanecer apenas! Essa firme posição de não especular além da Bíblia influenciará a exegese de Lutero, inclusive aproximando-o de pontos de vista mais hebraicos. É interessante notar que Lutero, em seu comentário sobre Hebreus tratando do famoso capítulo 11, afirma não se poder saber onde e qual o estado de Enoque (Gn 5.24) e acrescenta o mesmo sobre Elias (2Rs 2.11). A Escritura, segundo Lutero, não apresenta a condição deles agora.8

Antropologia e morte em Lutero

Pode-se perceber que o pensamento do reformador alemão foi modificando-se à medida que se aprofundava nos estudos das Sagradas Escrituras. Inclusive, o método de estudo modificou-se, deixando a tradição da Igreja quando a Bíblia não a autorizava. Nas suas 95 Teses, percebe-se o protestantismo rudimentar que aceita o papado e o purgatório, mesmo que atingindo ambos com ironias vez ou outra. A aproximação de Lutero do mundo bíblico trouxe-lhe um apego forte às Escrituras de tal forma que a sua antropologia inclinava-se cada vez mais a uma visão integral do ser humano – uma visão hebraica, para muitos. A dicotomia entre o corpo e a alma, em Lutero, tornou-se cada vez menos acentuada. Por outro lado, a tensão “corpo x alma” continua, sem que o reformador tente sistematizar os casos, equilibrando-se numa suave dicotomia em que não se especula a respeito. Vários estudos têm sido feitos sobre a  dificuldade da posição de Lutero e a sua compreensão do que ocorre ao ser humano na morte.9 Isso, pelo menos, evidenciaria a não sistematização de Lutero quanto a esse respeito e serve também de alerta para os que desejam aprofundar-se nessa matéria.

Lutero, no ano de 1521, ao comentar o Magnificat (o “cântico de Maria” - Lc 1.46-55)10 traz uma abordagem mais semelhante à tricotomia  baseando-se em 1Ts 5.23. Já no seu comentário ao capítulo 15 da Primeira Epístola aos Coríntios o seu enfoque antropológico parece ser mais integral. Ele relaciona o termo hebraico “nefesh” e “Seele” (alma, em alemão) dizendo que este termo está “significando não apenas uma parte [...] mas significa o ser humano inteiro.”11 E, finalmente em suas famosas “Tischreden” (conversas à mesa) em 1542/154312 essa tensão antropológica fica demonstrada na melhor e mais vigorosa aplicação do “já e ainda não”.

Lutero e a presença da morte

Lutero, desde muito cedo, se preocupou com a morte. Segundo a versão mais conhecida, a sua decisão de tornar-se monge foi tomada quando ele temia por sua vida durante uma forte tempestade.  Em 19 de março de 1518, em um dos seus primeiros sermões, Lutero tratou da ressurreição de Lázaro (Jo 11.1-45) citando os três tipos de mortes classificadas por Agostinho (a morte da alma; a pessoa sobrecarregada pelo peso dos pecados e, finalmente, o sepulcro).13 Lutero, na Dieta de Worms (1521), após defender sua posição, pediu um dia a mais para sua defesa, já temendo por sua morte. Depois de reafirmar seus escritos na Dieta de Worms, viveu por algum tempo fugitivo e refugiado pelo príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico III. O hino Castelo Forte, a “marselhesa da Reforma”, baseado no Salmo 46, foi escrito durante momentos angustiantes diante da morte.  Lutero muitas vezes recebeu e acolheu moribundos na sua casa. A morte sempre esteve presente na vida e pregação de Lutero:
Todos nós, sem exceção, somos intimados a comparecer diante da morte, e ninguém poderá morrer em lugar de outro, mas cada um por si mesmo agonizará. Até podemos fazer nosso lamento chegar aos ouvidos dos outros, mas cada um terá que enfrentar o momento da morte sozinho.14
Lutero e o preparo para a morte
Lutero escreveu um famoso sermão em 1519 sobre a preparação para a morte15. É um dos primeiros sermões do que se pode chamar de literatura protestante. Segundo Joachim Fischer, “até 1525 houve, ao todo, 21 reedições, além de duas traduções latinas – um sinal inequívoco de sua enorme popularidade.”16 Tal popularidade provavelmente se deu pelos diversos medos da morte que existiam na época.  Neste sermão, Lutero preocupa-se, em primeiro lugar, com a ordem dos bens que alguém deve deixar antes de se despedir em sua morte, evitando assim “rixas, discórdias, ou algum outro mal-entendido entre seus parentes.”17 E, em segundo, essa despedida inclui a dimensão espiritual, em que se deve perdoar a todos, mesmo os que nos tenham ofendido. Além disso, deve-se desejar o perdão de todos os que ofendemos também, inclusive com a omissão de nossas boas obras e maus exemplos que demos.

Lutero e o ensino sobre como enfrentar o medo da morte

Para Lutero, o medo da morte, do juízo e do fogo eterno, da consciência contra si mesmo, da acusação do diabo e condenação da Palavra de Deus é um “vale de desolação.”18

A morte, para Lutero, é uma jornada de encontro para Deus, mas que em Cristo, deve ser trilhada sem medo. “Aí se inicia a porta estreita, o caminho apertado para a vida, por onde cada um deve se aventurar com bom ânimo, pois o caminho é, por certo, estreito, mas não é longo.”19 Lutero faz uma analogia ao nascimento de uma criança, à dor do parto (Mc 9.23): “o mesmo vale para a morte: devemos livrar-nos do medo e saber que, depois, haverá muito espaço e alegria.”20

Mas, como enfrentar a morte com alegria? Lutero, apontando somente para Cristo, esclarece que não se devem fixar os pensamentos na imagem da morte, nem nos que foram mortos pela ira de Deus, nem mesmo em nossos pecados. São essas três imagens - morte, pecado e inferno - que nos assustam. Não devemos nos preocupar com elas, mas antes
deves preocupar-te com a morte de Cristo tão-somente; então encontrarás vida. No entanto, se mirar a morte em outro lugar, ela te mata com grande inquietude e tormento. É por isso que Cristo diz: “No mundo (isto significa também em nós mesmos) vocês terão inquietação. Em mim, porém, terão a paz.” [Jo 16.33]21
Lutero inclui também a dúvida da predestinação (se somos ou não eleitos) ao lado do medo da morte, do inferno e da culpa de nossos pecados. “Não deves contemplar [...] a predestinação em ti mesmo, nem nela mesma, nem naqueles que foram condenados.”22 Lutero sempre direciona o olhar da fé para Deus e não para nós mesmos. “Deves deixar que Deus seja Deus, que ele saiba mais sobre ti do que tu mesmo. Olha, por isso, a imagem celestial, Cristo.”23 Diante das imagens da morte, pecado e inferno, Lutero arremata que elas “fogem com todas as suas forças se exercitarmos em nós as imagens luminosas de Cristo [...] à noite[...].”24 Por isso, diante do medo da morte, Lutero pode afirmar confiantemente que Deus
te dá, em Cristo, a imagem da vida, da graça, da salvação, para que não te horrorizes diante da imagem da morte, do pecado e do inferno. Além disso, coloca sobre o seu amado Filho a tua morte, o teu pecado, o teu inferno, vencendo-os e tornando-os inofensivos para ti.25
Lutero, em seu comentário de Isaías, confronta também a vida monástica e os diversos tratados que ensinavam como enfrentar a morte.
No entanto, a vitória e preparação para a morte precisam ser vistas em Cristo, não nos desertos ou nos mosteiros onde as barrigas são engordadas. Você precisa olhar para Cristo, no qual você vê a morte conquistada [...] Nós não devemos olhar para os nossos pecados e atos dignos de vergonha, mas devemos olhar para fora de nós mesmos, longe de nossos pecados e da presunção, e ir só a Cristo mesmo [...] Ninguém tem tratado corretamente da preparação para morte dessa maneira, embora haja incontáveis tratados escritos sobre a preparação para a morte. Quanto a você, não considere sua morte como se estivesse em você mesmo, mas veja-a em Cristo, o Vitorioso.26
Lutero e a imortalidade
Segundo Paul Althaus27, Lutero via na palavra proferida por Deus, seja em graça ou em juízo, a eternidade do ser humano. Não seria uma alma, mas o ser integral, como um todo que está vivo para Deus, apesar de morto. No entanto, Lutero não explica como isso seria possível ao comentar sobre Jesus e a ressurreição (Mt 22) - “Deus não é o Deus de mortos, mas de vivos”. A imortalidade, para Lutero, não está na alma humana, mas na palavra dita por Deus. Lutero fazia o seguinte silogismo: “Se Deus se apresenta a você como seu Deus, então você está vivo para Deus, mesmo quando você está morto”28. Althaus continua
de acordo com Lutero, isso se aplica como verdade para todo o homem – mesmo que Deus não fale com ele em graça, mas "em ira". Não há base alguma para um homem afastar-se, ou fugir da sua relação com Deus pela morte do seu corpo. O fato de que Deus falou com ele continua a ser o seu destino inevitável.29
E, na mesma direção, Oswald Bayer assegura que para Lutero a relação com Deus não é interrompida com a morte, antes “essa relação espera tão-somente a continuidade do agir e falar de Deus.”30 Logo, a imortalidade da alma não se daria como um ente à parte do corpo, mas guardada na palavra pronunciada de Deus.

Lutero e o sono da morte

O pensamento do reformador se aproxima de uma espécie de sono da alma:
Deveríamos exercitar-nos na fé e acostumar-nos a desdenhar da morte e encará-la como um sono profundo [...] ver o esquife como o colo ou o paraíso do Senhor Cristo, contemplar a sepultura como nada mais do que uma cama macia, pois assim verdadeiramente é tudo diante de Deus.31
Por outro lado, Lutero afirmou algo que dá a entender que há vida após a morte.  Mas o reformador não entra  em detalhes: “Como as almas descansam nós não sabemos; no entanto, é certo que elas vivem.”32  E, nas “Tischreden” (conversas à mesa), em resposta à sua esposa, ele diz:
Sim, você, também já está no céu [...] Abraão vive também. Deus é Deus dos vivos [...] Agora, se alguém disser que alma de Abraão vive com Deus mas seu corpo está morto, este distinção é uma bobagem [...] Esta é a maneira de vocês filósofos falarem: “Depois que alma partir do seu domicílio, etc”. Seria uma alma estúpida se ela estivesse no céu e desejasse o seu corpo!33
Daí, talvez, melhor chamar o pensamento de Lutero sobre o estado após esta vida de “sono da morte” e não de “sono da alma” inconsciente. O cristão teria uma alma que descansa alegremente em Deus – o que implica algum estado de consciência, mas que Lutero não sabe como elucidar a exemplo do caso de Abraão.   Por outro lado, para Lutero, a estado anterior à ressurreição parece que cairá no esquecimento. “Repentinamente ressuscitaremos no último dia, sem conseguir compreender como morremos e como passamos pela morte.”34 Por fim, segundo Pieper, “um sono da alma que inclui a alegria em Deus (como diz Lutero) não pode ser chamado de doutrina falsa.”35

Lutero a esperança de vida após a morte

Um exemplo do que define a certeza, a esperança cristã, para Lutero, são as palavras de Cristo em Jo 11.26: “Aquele que crê em mim, nunca morrerá.” Para Lutero, o “lugar” de descanso está na palavra de Deus e na promessa de Cristo. E, no último dia, todos, crentes ou não, ressuscitarão para o juízo, uns para vida eterna com Cristo e outros para a condenação eterna.36 A esperança e a alegria do porvir são aguardadas no dia da ressurreição. “Cairemos no sono até que ele [isto é, Cristo] venha e bata à porta do tumulozinho e diga: ‘Doutor Martim, levanta!’ Então me levantarei no mesmo instante e serei eternamente feliz com ele.”37

Interessante é também a explicação do reformador sobre as palavras de Cristo ao ladrão da cruz: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. No inverno de 1542 ou 1543, nas “Tischreden” (conversas à mesa), alguém pensando em Lc 23.43 perguntou a Lutero se a alma escapa imediatamente do corpo mortal entrando no paraíso. E o reformador responde:
Sim, o que significa esta palavra “hoje”? É verdade que a alma ouve, sente, e vê depois da morte, mas como isso ocorre nós não entendemos [...] Se  nós tentássemos imaginar isso de acordo [nossa concepção de tempo] nesta vida, nós seríamos bobos. Cristo respondeu aos seus discípulos que eram, sem dúvidas, curiosos. [Ele disse] “Aquele que crer em mim, ainda que morra, viverá.” [Jo 11:25]. De forma similar [Paulo escreveu], “quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor [Rm 14.8]”38
Lutero e a responsabilidade médica e eclesiástica
A morte não deveria afugentar os que podem oferecer ajuda médica e espiritual. Segundo Lutero, as autoridades médicas e eclesiásticas não deveriam ter pavor da contaminação. O médico, o pastor ou diácono, etc,  deveria “ser o infectado representante de Jesus Cristo.”39

Lutero e a dignidade do tratamento dos mortos

O corpo humano tem seu valor, especialmente à luz da ressurreição. Por isso, os cristãos devem modificar sua percepção e linguajar ao tratar dos mortos.  Segundo Lutero,
Ao ver meu pai, minha mãe, meu irmão, minha irmã, um filho ou amigo sepultado debaixo da terra, como cristão, não devo dizer: “Eis aí um cadáver ou uma carniça fedorenta e podre”, e sim: “Aí está meu amado pai, mãe, filho, amigo, príncipe e senhor, etc., e, hoje ou amanhã, também estarei com eles. Que são eles? Grãozinhos que, brevemente, brotarão imortais e imperecíveis, muito mais belos que a verde plantação na lavoura, ao chegar o verão”. Assim é que se fala! Essa é a linguagem celeste de Deus e seus anjos.40
Cabe também lembrar que Lutero fala da desonra terrena que nosso corpo não glorificado passa.  O corpo sofre de desonra por suas necessidades e inutilidade após a morte, sofrendo até o roubo de suas roupas.41 Além disso, é muito frágil, padecendo por doença, podendo ser atingido até por um piolho!42

Conclusão

Diferente de Calvino43, o pensamento de Lutero sobre a vida após a morte é afetado por uma antropologia mais integral. A tensão entre corpo e alma, desta vida e do porvir, para Lutero, ao que parece, se dá mais dentro de uma perspectiva escatológica. Segundo Pieper,
Lutero fala mais cautelosamente do estado da alma entre a morte e a ressurreição do que [...] os teólogos posteriores que transferiram algumas coisas para o estado entre a morte e a ressurreição que pode ser dito com certeza apenas do estado após a ressurreição.44
Assim também, nessa mesma linha vê Rieth
Assim, [Lutero] não se incomoda com o fato de Paulo falar da vida com Cristo logo após a morte e, paradoxalmente, abordar a ressurreição futura em face do juízo final. Lutero não busca uma solução sistemática dessas diferenças e evita todo e qualquer arrazoado que conduza à especulação grosseira [...] Sustenta que toda e qualquer consideração sobre um estado intermediário entre morte e ressurreição desvia-se do centro da questão, pois pressupõe uma noção de tempo empiricamente percebida, que é totalmente diversa do tempo de Deus [...] Por isso, Lutero prefere falar em “sono da morte”, ao invés de um “estado intermediário”.45
Talvez, a posição radical de Lutero sobre quase um sono da alma tenha se dado em reação à doutrina do purgatório, da intercessão dos santos, das diversas questões que estavam em ebulição ainda do mundo medieval. O “Leitmotiv”  da Sola Scriptura impeliu o coração do reformador para longe de quaisquer considerações não bíblicas. A redescoberta da justificação pela fé pode ter também inclinado Lutero para uma escatologia realizada de tal maneira que os fundamentos da vida após a morte foram sacudidos. Uma coisa é certa: em um contexto em que as pestes, a morte e o medo do porvir estavam em alta, foi em hora oportuna que a Providência fez arder a tocha do Evangelho sob o calor da justificação por graça e fé somente.

Havendo um “sono da morte” ou apenas a ressurreição após esta vida, o certo é que Lutero ensina a olharmos para a Escritura diante da morte e esperar nas promessas de Deus reveladas nEla. É pela Escritura que somos exortados a não esquecermos da constante presença da morte. As pessoas, segundo o reformador, “fazem de sua vida uma vida eterna, mesmo que a morte não desgrude de seus calcanhares e seja nosso vizinho mais próximo.”46 Lutero mostra como, pelas Escrituras, podemos viver  uma vida sem medo da morte. Somos desafiados a nos preparar adequadamente para a morte na esperança do Evangelho e jamais confiar ou nos desesperar em nós mesmos. Somos estimulados, nas promessas de Deus, a cuidar um dos outros, mesmo em situação de risco de vida.  Somos entusiasmados, em Cristo, a aguardamos a redenção e vitória final sobre a fragilidade do nosso corpo, sobre os nossos pecados, sobre a nossa morte e sobre a nossa condenação ao inferno tendo o próprio Cristo como único que venceu tudo pelos seus! Somos comovidos a meditar nisso, pois como disse Calvino, “ninguém terá progredido bem na escola de Cristo senão aquele que aguardar com regozijo o dia da morte e da ressurreição final.”47 Em Cristo temos a morte da nossa morte!

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=295

domingo, abril 17, 2016

Editora Vida Nova: História e Cristianismo em J. Gresham Machen

O texto que segue é da Revista Teologia Brasileira.

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História e Cristianismo em J. Gresham Machen

INTRODUÇÃO

O Fundamentalismo foi um movimento marcante de reação à entrada do Liberalismo Teológico nos arraiais das igrejas protestantes americanas no início do século XX. O termo “Fundamentalismo” é uma referência direta à obra de doze volumes intitulada The Fundamentals lançada em 1910. Seu conteúdo professou guerra aberta contra o ateísmo, o catolicismo, o socialismo, a filosofia moderna, o mormonismo, o espiritismo e muitos grupos semelhantes, mas principalmente, a Teologia Liberal “que se baseava numa interpretação naturalista das doutrinas da fé, a alta crítica alemã e o darwinismo, que pareciam subverter a autoridade da Bíblia” (MCINTIRE em ELWELL, 1992, v.2, p. 187).
Duas informações nos fornecem uma noção do impacto da obra: 1) O número de exemplares: Foram três milhões de cópias distribuídas gratuitamente por todo território americano. 2) As denominações incluídas: A obra teve a co-autoria de presbiterianos, batistas e anglicanos de vários lugares como Inglaterra, Escócia, Canadá e EUA.
Há historiadores como Roger E. Olson que dividem o fundamentalismo em duas fases: moderada e extremista (cf. OLSON, 2001, p. 576-84). Para ele, Machen e The Fundamentals fazem parte dessa primeira fase moderada. Mcintire divide a história do fundamentalismo em quatro fases (cf. MCINTIRE, 1992, p. 187-90).
Em sua primeira das quatro fases, o Fundamentalismo lutava pelos elementos fundamentais da fé cristã. Entretanto, não demorou muito e “a lista dos inimigos tornou-se mais estreita e os fundamentos, menos abrangentes” (MCINTIRE, 1992, p. 187) desviando o movimento do seu foco inicial. É na primeira fase, nesse cenário turbulento de luta direta contra o Liberalismo, que surge a figura de J. Gresham Machen.
Machen está ligado (como um protagonista de valor) a quase todas as obras literárias quando a matéria é a controvérsia Fundamentalismo-Liberalismo (cf. PIERARD em ELWELL, 1992, p. 424-29; CAIRNS, 1995, p. 420-33; HART, 1993; DOLLAR, 1962; NOLL et. al, 1983, p. 378-82; MCINTIRE, 1992). Apesar de não apreciar a denominação “fundamentalista”, Machen e o Fundamentalismo (da primeira fase) tinham um inimigo comum – o Liberalismo. Nas palavras do próprio Machen: “Na presença de um grande inimigo comum, eu tenho pouco tempo para atacar meus irmãos [fundamentalistas] que permanecem comigo na defesa da Palavra de Deus” (STONEHOUSE, 1954, p. 337-8). Ele acreditava viver em tempos de conflito. Em suas palavras, “O presente não é tempo para tranquilidade ou prazer, mas para seriedade e obra súplice” (MACHEN, 2001, p. 172).
Para muitos, Machen foi o principal teólogo do movimento (OLSON, 2001, p. 557). A explicação para tamanha reputação se encontra em sua erudição, mas principalmente por sua obra Cristianismo e Liberalismo onde se propõe demonstrar que o “Liberalismo moderno […] não é cristão” (MACHEN, 2001, p. 18).
Por sua erudição, por seus feitos numa época marcante para o protestantismo, pelo impacto e, principalmente pela natureza holística de sua obra, justifica-se uma análise cuidadosa de sua vida e obra. Todavia, devido às limitações de espaço, nos deteremos a um aspecto marcante de seu material apologético: O assentimento da historicidade dos eventos bíblicos como fator indicador da autêntica ortodoxia cristã.
O artigo que segue trará uma breve biografia de Machen seguida de uma análise de sua magnum opus (Cristianismo e Liberalismo); em seguida exporá a importância da história no cristianismo tendo o Liberalismo e a Neo-ortodoxia (dois fenômenos confrontados por Machen) como contraponto. Por fim, uma palavra sobre a perspectiva de Machen quanto à crítica histórica.
2 UMA BREVE BIOGRAFIA (cf. STONEHOUSE, 1954; NICHOLS, 2004; KELLY, Em ELWELL, v. 2, p. 463-4. MACHEN, 2001, p. i-iv).
Nascido em Baltimore em 28 de julho de 1881, John Gresham Machen era parte de uma família presbiteriana próspera, tanto financeira quanto culturalmente. Seus pais, Arthur W. Machen e Mary G. Machen o introduziram em um estilo de vida que combinava piedade e intelectualidade. Machen sempre foi encorajado a buscar o melhor da educação. Por exemplo, logo cedo foi acostumado a falar francês em casa. Sobre sua erudição e embates com os liberais, Olson diz que “Seus oponentes teológicos liberais não conseguiram encontrar nenhuma falha em sua erudição e nem demiti-lo taxando-o de obscurantista demente, como costumava fazer com outros fundamentalistas” (OLSON, 2001, p. 577).
Formou-se com honras (primeiro da turma) na Universidade de Johns Hopkins em 1901, e logo após estudou um ano com o famoso estudioso do grego bíblico B. L. Gildersleeve (na época, presbítero de sua igreja). Em 1902 se matriculou em Princeton. Em 1905 concluiu sua graduação. Lá, estudou com homens como B. B. Warfield e Greahardus Vos. Após a conclusão dos seus estudos em Princeton (1905), foi convidado por Francis L. Patton e William P. Armstrong a ser instrutor de grego bíblico. Porém, preferiu ir a Alemanha estudar em Marburg e Göttingen. Lá estudou um semestre em cada instituição. Teve como um de seus mestres o famoso liberal Wilhem Herrmann. A despeito da extraordinária influência de Wilhem Herrmann e da crise teológica decorrente dessa, Machen, com ajuda de B. B. Warfield, Patton e Armstrong, persistiu numa visão conservadora quanto às Escrituras.
De volta ao território americano, aceitou o convite de ensinar grego bíblico em Princeton. Na época, o livro texto era Essentials of New Testament Greek de Huddlestone. Por considerá-lo “pobre e escasso”, Machen o complementou com exercícios extras produzidos por ele mesmo. Em 1923, suas notas de aula se converteram em New Testament Greek for Beginners. Sem dúvida, uma obra marcante para todos os estudantes iniciantes de grego do Novo Testamento do século XX.
Em 1920 Machen teve sua primeira participação controversa em sua denominação. Valdeci da Silva Santos nos explica:
Naquela ocasião [Assembléia Geral], os delegados da reunião deveriam votar o Plano Filadélfia, que previa a coalizão de dezenove pequenas denominações presbiterianas em uma única denominação nacional. […] contrariando os colegas de cátedra [Joseph Ross Steveson e Charles Eerdman], Machen se opôs ao plano, por entender que ele pretendia uma reunião jurídica e uma pluralidade teológica indesejável (SANTOS, 2004, p. 152).
Em 1923 Cristianismo e Liberalismo, um marco para o fundamentalismo, foi lançado confrontando não somente o Liberalismo como todos os que o toleravam. A obra evidenciou ainda mais as diferenças entre liberais e ortodoxos que, até então, ainda coexistiam nas mesmas denominações e instituições de ensino. Algumas das novas denominações criadas a partir de 1930 foram: Igrejas Fundamentalistas Independentes dos Estados Unidos (1930); Associação das Igrejas Batistas Regulares (1932); Igreja Presbiteriana Ortodoxa (1936); Igreja Presbiteriana Bíblica (1938) e Associação Batista Conservadora dos Estados Unidos (1947).
Com a persistência da Presbyterian Church in the U.S.A. (doravante, PCUSA) e Princeton em tratar as diferenças nas instituições como questões meramente administrativas e não doutrinárias, Machen, após muitas lutas, deixa Princeton em 1929 para fundar no dia 25 de setembro do mesmo ano o Seminário Teológico de Westminster. Depois da derrota no tocante a Princeton, Machen perdeu a luta com respeito à Junta de Missões Estrangeiras. Foram várias as acusações feitas ao Teólogo de Princeton. Dentre elas: falta de zelo e fidelidade em manter a paz na igreja (MACHEN, 2001, p. iii). No dia 29 de março de 1935 foi suspenso do ministério da PCUSA. Em 1936, junto com outros cinco mil conservadores fundou a Igreja Presbiteriana da América, que posteriormente foi denominada Igreja Presbiteriana Ortodoxa (OPC).
Resistindo aos conselhos de amigos, Machen foi para o Estado de Dakota do Norte em resposta a um convite para pregar. No decorrer da viagem contraiu pneumonia e no primeiro dia de 1937 veio a falecer com apenas 55 anos de idade. Como Calvino e outros grandes homens que representam uma era, Machen teve um fim prematuro. Suas últimas palavras foram: “Sou grato pela obediência ativa de Cristo sem a qual não há esperança” (MACHEN, 2001, p. iv).

3 CRISTIANISMO E LIBERALISMO, SUA MAGNUM OPUS

A produção literária de Machen é extensa; inclui artigos, pregações e livros. De todas elas, Cristianismo e Liberalismo é, sem dúvidas, a mais emblemática. Stonehouse, um dos grandes biógrafos de Machen, dedica um capítulo inteiro sobre a obra (STONEHOUSE, 1954, p. 336-50). Aqui queremos alistar duas possíveis razões para sua proeminência: 1) A repercussão e 2) Seu conteúdo holístico.

3.1 A Repercussão.

Nenhum livro faz sucesso somente devido ao seu conteúdo. É na sintonia entre conteúdo e o “espírito de mundo” (zeitgeist) e/ou contexto histórico que encontramos a fórmula do sucesso. Faz-se, pois, necessário uma palavra sobre o contexto histórico de Cristianismo e Liberalismo.
Segundo Stephen J. Nichols: “O contexto imediato de Cristianismo e Liberalismo é o sermão pregado por Harry Emerson Fosdick no dia 21 de maio de 1922 cujo título era ‘O Fundamentalismo ganhará?” (NICHOLS, 2004, p. 82). Stonehouse corrobora as palavras de Nichols ao afirmar que a aceitação de Macmillan se deu porque foi “influenciada pela atenção que tinha sido atraída para Fosdick, a grande controvérsia, e a força do movimento de reafirmação dos fundamentos” (HART, 1995, 341).
Fosdick “foi um dos clérigos mais influentes da primeira metade do século XX” (LINDER em ELWELL, 1991, v.2, p. 183) bem como um dos maiores “popularizadores do liberalismo teológico moderno” (LINDER, 1991, p. 183). Por seu empenho em defesa do Liberalismo, foi denominado pelos conservadores de “Moisés do modernismo” e “Jesse James do mundo teológico”.
A influência de Fosdick e sua pregação explícita contra o fundamentalismo explicam a aceleração da publicação de Cristianismo e Liberalismo. Era preciso uma resposta rápida e à altura. E Macmillan encontrou um excelente representante do lado conservador da controvérsia. A editora recebeu o livro no início de dezembro de 1922 e dois meses depois foi publicado. Segundo Stonehouse, “durante do resto do ano um pouco menos que mil cópias foram vendidas, mas em 1924, quando o livro tornou-se popular e a controvérsia [fundamentalismo-modernismo] tornou-se mais intensa, a venda total aproximou-se das cinco mil cópias” (STONEHOUSE, 1954, p. 341).

O sucesso de vendas não é a única amostra de sua importância e/ou proeminência em relação às suas outras obras. Foram várias as recomendações feitas por especialista. Mas ficaremos com a mais simbólica; as palavras de comentarista secular Walter Lippmann:
É um livro admirável. Por sua perspicácia, por sua importância, e por seu tino, esta fria e rigorosa defesa do protestantismo ortodoxo é, penso, o melhor argumento popular produzido pelo outro lado da controvérsia. Faremos bem ouvir o Dr. Machen. Os liberais ainda têm que respondê-lo (NICHOLS, 2004, p. 82).

3.2 O Conteúdo Holístico

Como o próprio título revela, a obra lida com uma situação histórica específica: A distinção entre Liberalismo (modernismo) e Cristianismo torna o primeiro uma ameaça a ser condenada, justificando-se, pois, uma luta aberta contra o mesmo.
Machen lida, pois, com condições peculiares dos seus dias; como por exemplo, a aceitação de liberais em instituições cristãs; a desonestidade desses na manutenção de expressões ortodoxas, porém, redefinidas, bem como no uso dos recursos de instituições confessionais. O uso constante da expressão “situação presente”, “presente controvérsia”, “no presente”, “o presente”, “medidas necessárias hoje” (MACHEN, 2001, p. 163, 166, 169, 170, 172) reforça sua preocupação com uma situação histórica particular. Em alguns casos, Machen usa o termo “igreja” pressupondo tratar-se da “Igreja Presbiteriana”. Alguns dos conselhos do último capítulo só poderiam ser aplicados ao governo de igreja por ele defendido (presbiteriano), revelando assim, a aplicabilidade restrita da obra.
Apesar de sua natureza particular, em Cristianismo e Liberalismo Machen não nos proporciona somente um manual peculiar aos presbiterianos contra o Liberalismo Teológico do início do século XX, tornando-se uma obra “presa” a um contexto histórico particular. Antes, por tratar com os elementos essenciais do cristianismo, ou seja, as doutrinas inegociáveis que fazem do cristianismo, cristianismo, Machen, legou à Igreja as colunas doutrinárias do cristianismo.
Cristianismo e Liberalismo não somente nos ajuda a entender a como lidar com o Liberalismo; ele nos apresenta o que realmente é o cristianismo. Embora a obra tenha um caráter apologético, é uma obra mais positiva que negativa, por que enquanto combate o Liberalismo (natureza negativa), Machen nos ensina o que é Cristianismo (natureza positiva). “A resposta de Machen vai além da sua situação contemporânea e fala de questões de importância atemporal” (MACHEN, 2001, p. 83).
O caráter holístico da obra também é revelado em sua metodologia. Machen analisa o sistema a partir de seus fundamentos e/ou pressupostos. Sua crítica capital ao Liberalismo é que ele “[…] procede de uma raiz completamente diferente”, ou “bases da fé” (MACHEN, 2001, p. 172) opostas. Aqui Machen nos alerta para o fato de que é exatamente nos fundamentos que se trava a verdadeira batalha pela fé. Toda teologia é construída a partir de pressuposto e/ou fundamentos; e é ai que as batalhas devem ser travadas.
A declaração que segue revela a consciência de Machen do caráter atemporal de sua defesa do cristianismo: “a investigação com a qual estamos agora preocupados é sem dúvida a mais importante de todas aquelas com as quais a igreja deve lidar” (MACHEN, 2001, p. 19).
Por sua natureza holística, Cristianismo e Liberalismo ajuda-nos a julgar e/ou entender assuntos outros como espiritualidade, exclusivismo, ecumenismo, milagres, crítica bíblica, apologética, linguagem religiosa, amor, justiça, salvação, pragmatismo, a natureza da fé etc. Sua metodologia de abordagem ao Liberalismo pode ser usada para avaliação de qualquer fenômeno religioso. Ela pode ser usada contra o subjetivismo do misticismo bem como a secura anti-sobrenatural do cristicismo histórico que negava os eventos mais importantes do cristianismo (morte e ressurreição de Cristo). Sem dúvidas, uma obra para todos os tempos.

4. CRISTIANISMO E HISTÓRIA

O tema “história” é uma constante na vida e obra de J. Gresham Machen. Ele aparece cedo nos escritos do teólogo de Pricenton. Permeia toda sua monografia de graduação sobre o nascimento virginal de Cristo e é tônica do seu sermão de ordenação cujo título era História e Fé: Um Evangelho despido da história é simplesmente uma contradição de termos (MACHEN, 2001, p.i.). A temática é reiterada várias vezes ao longo de sua produção literária.

4.1 O Liberalismo e a História

Sua preocupação com a história tinha uma explicação: A separação entre cristianismo e história era, para Machen, o grande interesse da teologia moderna (MACHEN, 1951, p. 170). Em suas palavras:
Em uma época como esta, é óbvio que cada herança do passado deve ser objeto de uma crítica aguda; […] a dependência de qualquer instituição do passado é agora, às vezes, até mesmo considerada como fornecedora de uma presunção não em função da mesma, mas contra. […] Se tal atitude for justificável, então nenhuma instituição é encarada com uma presunção hostil mais forte do que a instituição da religião cristã, visto que nenhuma outra instituição tem se baseado com mais honestidade na autoridade de uma era passada do que ela (MACHEN, 2001, p. 15).
Ele entendeu como poucos que quando o assunto é teologia moderna, uma das questões cruciais era o lugar da história no Evangelho cristão (HART, 1995, p. 344). Para Machen “O cristianismo […] é dependente da história” (MACHEN, 2001, p. 122). E ainda: “um evangelho independente da história é uma contradição de termos” (MACHEN, 2001, p. 122). Para ele:
O estudante do Novo Testamento deve ser primariamente um historiador. O centro e o cerne de toda a Bíblia é história. Tudo que está na Bíblia está ligado a um arcabouço histórico e nos conduz a um clímax histórico. A Bíblia é primariamente um livro histórico (MACHEN, 1951, p. 170).
A hermenêutica moderna foi alvo das críticas de Machen, pois não permitia se lê um evento sobrenatural como histórico. Machen detecta esse pressuposto ao afirmar que “a raiz do movimento [liberal] é uma; as variedades da religião liberal moderna são arraigadas no naturalismo – isto é, na negação de qualquer entrada do poder criativo de Deus” (MACHEN, 2001, p. 14). De encontro ao naturalismo Machen assegura que:
O Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa histórica – isto é admitido por todos os que têm se confrontado com os problema [sic] históricos. Mas, o Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa sobrenatural. Porém, para o liberalismo moderno, uma pessoa sobrenatural nunca é histórica (MACHEN, 2001, p. 108).
De Ritschl e Kant o Liberalismo herdou a idéia de que a mensagem religiosa se reduz à ética. Essa redução do cristianismo tinha uma relação direta com a desvalorização de sua historicidade. Vindo em uma corrente oposta, Machen afirma que a ética cristã (imperativo) está atrelada e/ou é decorrente do indicativo histórico da morte e ressurreição de Cristo. Em suas próprias palavras:
O pregador liberal está realmente rejeitando toda a base do Cristianismo, que não é uma religião edificada sobre aspirações, mas em fatos. Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o Cristianismo – o liberalismo está, no geral, no modo imperativo, enquanto o cristianismo começa com um indicativo triunfante […] (MACHEN, 2001, p. 53).
Ainda pensando na relação entre ética e cristianismo, Machen argumenta que há fatos que se impõem em nossa vida. São eles: sofrimento, morte, culpa e pecado. A esses fatos, afirma Machen, “o pregador moderno responde – com exortação” (MACHEN, 1951, p. 171). A essa postura Machen contrapõe:
Muito eloqüente, meu amigo! Mas que pena! Você não pode mudar os fatos. O pregador moderno oferece reflexão. A Bíblia oferece mais. A Bíblia oferece notícias – não reflexão sobre o antigo, mas notícias de algo novo; não algo que pode ser deduzido ou descoberto, mas algo que aconteceu; não filosofia, mas história; não exortação, mas o Evangelho (MACHEN, 1951, p. 171).
No primeiro capítulo de sua magnum opus, Machen argumenta que a essência do cristianismo é doutrina. Uma clara rejeição do conceito sentimental e/ou experimental de religião defendido pelos liberais e herdado de Schleiermacher. Sobre a relação história e doutrina Machen afirma:
Desde o início, o evangelho cristão, como de fato o nome “evangelho” ou “boas novas” infere, consistia de relato de algo que havia acontecido. […] “Cristo Morreu” – isto é história; ‘Cristo morreu pelos nossos pecados – isto é doutrina. Sem estes dois elementos, conjugados em união absolutamente indissolúvel, não há Cristianismo.” (MACHEN, 1951, p. 35)
E mais:
O mundo deveria ser redimido através da proclamação de um evento. E com o evento estava o seu significado; e a apresentação do evento com seu significado é doutrina. Estes dois elementos estão sempre combinados na mensagem cristã. A narração dos fatos é história; a narração dos fatos com significado dos mesmos é doutrina (MACHEN, 1951, p 37).
Em suma, para Machen, no cristianismo, o sobrenatural, a ética, a doutrina e a história estão essencialmente conectadas. Nas palavras de Machen, trata-se de uma “união indissolúvel”. O abandono da história pode até manter a crença “filosófica” em Deus com seus corolários éticos. Porém, afirma Machen, o abandono da história, “nunca pode preservar o Evangelho, pois ‘evangelho’ significa ‘boas novas’” (MACHEN, 2004, p. 98).

4.2 A Neo-ortodoxia e a História

No dia 2 dezembro de 1929, A Savage of Scribner´s Publishing House enviou para Machen uma cópia da obra de Emil Brunner intitulada The Theology of Crisis. O objetivo da editora era uma recomendação e/ou conselho de um representante da ala conservadora (HART, 1991, p. 189). A resposta de Machen a Scribner “tornou-se sua resposta típica quando o assunto era neo-ortodoxia; disse que não entendia a teologia da crise como um retorno ao cristianismo evangélico, mas seu conhecimento limitado o impedia de um julgamento final” (HART, 1991, p. 189).
Um ano antes, em um artigo escrito em 23 de abril para um pequeno grupo de ministros, Machen demonstra muito cuidado em tomar uma posição para o movimento que estava surgindo – a teologia da crise. Em várias partes do documento Machen revela suas limitações. Ele diz que tem “poucas palavras” (MACHEN, 1991, p. 197) e que tem dificuldade de “explicar o que não entende” (MACHEN, 1991, p. 200).
Para Machen, em alguns assuntos como: o homem perdido no pecado e a graça de Deus como um dom de Jesus Cristo seu filho, a teologia da crise “soa como John Bunyan, João Calvino, o Catecismo Menor e a Fé Reformada” (MACHEN, 1991, p. 200). No entanto, apesar de todo cuidado para com assuntos não completamente compreendidos, Machen é firme em declarar que:
Eles [Barth, Brunner e seus associados] diferem, eu penso (se pudermos ignorar detalhes e irmos imediatamente ao centro das coisas) – eles diferem na sua epistemologia, diferem em sua atitude para com simples informação histórica que a Bíblia contém (MACHEN, 1991, p. 201).
Para Machen, Barth “tenta fazer a fé cristã independente das descobertas da história científica quanto a vida de Cristo” (MACHEN, 1991, p. 203). E ainda, “A atitude de Barth e seus associados no tocante ao criticismo histórico constitui uma fraqueza mortal da escola” (MACHEN, 1991, p. 204).
A despeito de sua reconhecida limitação julgamento, o grande incômodo para Machen está na estranha indiferença de Barth a questões de criticismo literário e histórico no tocante a Jesus Cristo. Essa indiferença era tamanha que até mesmo Bultmanm, com seu ceticismo extremo na esfera histórica, pode aparentemente ser considerado um membro da escola barthiana uma vez que era um dos contribuidores do jornal Zwischen den Zeiten (MACHEN, 1991, p. 204).
“A reação inicial de Machen ao barthianismo sugere que ele considerou a neortodoxia, em suas variações tanto na América quanto na Europa, como uma extensão do Liberalismo protestante ao invés de um repúdio” (HART, 1991, p. 193). Ambas as escolas tinham problemas quanto à historicidade do cristianismo. Na primeira, a negação do sobrenatural não permitia uma “leitura completa” do registro dos Evangelhos fragmentando-os na busca do Jesus histórico. Na segunda, as doutrinas basilares como Trindade, fé, pecado e redenção em Jesus eram fruto de uma leitura descompromissada e indiferente da história. Na primeira, o Evangelho era julgado pela crítica história naturalista; na segunda, a história era desvalorizada pelo subjetivismo decorrente do seu conceito deturpado de revelação. Ambas eram ameaças ao verdadeiro cristianismo, pois tinham negligenciado um elemento essencial – sua historicidade.

5 O CRITICISMO HISTÓRICO

Segundo Eta Linnemann, “Para a teologia histórico-crítica, a razão crítica decide o que é e o que não pode ser realidade na bíblia; e essa decisão é feita na base da experiência diária acessível a cada pessoa” (LINNEMANN, 2009, 101-102). Em outras palavras, “Aquilo que é espiritual é julgado segundo critérios da carne” (LINNEMANN, 2009, p. 102). Certamente partindo desse pressuposto, nunca chegaremos a conclusões de cunho sobrenatural. Pois, como bem colocou Augustus Nicodemus: “É sabido e reconhecido, nas mais diversas áreas do conhecimento, que a escolha de um método já determina, por antecipação, a extensão e o tipo de resultados da pesquisa” (LOPES, 2005, p. 136).
A despeito de seus pressupostos e métodos, para Machen “Não podemos, […], ser indiferentes ao criticismo bíblico” (MACHEN, 1951, p. 183-184). Ele entendia que a rejeição do caráter histórico das Escrituras era uma ameaça a igreja uma vez que a Escritura é o fundamento desta. “Machen não apenas censura as críticas liberais, mas também o que ele considerou a piedade convencional e descuidada do protestantismo” (HART, 1995, p. 37). Apelar para o sobrenatural não era o único caminho. Nas palavras de Hart:
Embora [Machen] cresse que a origem do cristianismo era sobrenatural e que a visão de Paulo é mais bem entendida com uma reflexão dessa realidade, Machen não se satisfazia com a história providencial para explicar a origem do movimento cristão (HART, 1995, p. 50).
“Ao invés de evitar os métodos e achados da alta crítica, como muitos conservadores fizeram, Machen usou a nova erudição tanto para defender o Cristianismo histórico quanto para atacar a complacência do protestantismo corrente” (HART, 1995, p. 50).
Para Hart, a postura de Machen tem explicação na sua formação em Princeton. “Tão incongruente quanto parece, a doutrina da inerrância bíblica do Seminário de Princeton instigou seus estudiosos a intensificar o estudo crítico ao invés de fugir dele” (HART, 1995, p. 42). Hart esclarece:
[…] teólogos de Princeton usavam métodos críticos para argumentar que inspiração e erudição avançada eram compatíveis. […] Ao invés de impor limites, essa doutrina [inspiração] permitiu os estudiosos de Princeton explorar completamente os aspectos humanos da formação e recepção da Bíblia (HART, 1995, p. 43).
Aqui se faz necessário uma palavra sobre o estudo da história no início do século XX. Uma nova concepção da pesquisa histórica estava surgindo – era a Nova História. Enquanto Machen “assumiu uma visão atemporal e estática do passado que objetivava encontrar o propósito original do autor” (HART, 1995, p. 55), os da nova escola estavam preocupados com os elementos sociais e culturais que explicavam os eventos históricos. Para essa escola, cristianismo não era definido pelos ensinos de Paulo e dos apóstolos; antes, como tudo nessa escola, Cristianismo era um fenômeno social. Muito da obra The Origin of Paul´s Religion de Machen foi investido para revelar “as explicações impróprias do naturalismo que atribuiu a crença de Paulo ao condicionamento do desenvolvimento histórico e cultural” (HART, 1995, p. 51).
Essa diferença entre escolas fica clara quando observamos as variações nos julgamentos feitos em resenhas e/ou comentários sobre The Origin of Paul´s Religion. Elas iam de elogios rasgados como os feitos por Benjamin W. Bacon até as críticas feitas por James Moffatt (HART, 1995, p. 53-4). Parte das críticas bem como dos elogios se davam pela concepção de história, e, por conseguinte, da metodologia empregada.
Machen reconhecia a intensa relação entre método e pressuposto. Ele era consciente de que não existia um “criticismo científico puramente neutro” (MACHEN, 2004, p. 519. Além disso, Machen tinha ciência de que muitas das pressuposições do criticismo eram naturalistas e por isso “uma pessoa sobrenatural, de acordo com os historiadores modernos, nunca existiu” (MACHEN, 1951, p. 175). Para ele, a negação do nascimento virginal, por exemplo, se dava por “pressuposições filosóficas ao invés da tradição histórica” (HART, 1995, p. 41).
Ele critica o pressuposto naturalista que nega o sobrenatural quanto lida com a tentativa liberal de separação o natural do sobrenatural no relato bíblico. Para ele “o processo de separação nunca foi realizado com sucesso.” (MACHEN, 2001, p. 108), pois revela inconsistência entre os pressupostos e as conclusões. Ele nos alista três razões para o fracasso de uma “leitura seccionada” dos Evangelhos:
Em primeiro lugar, existe a dificuldade inicial de separar a narrativa natural da narrativa sobrenatural nos Evangelhos. As duas são inextrincavelmente interligados. […] Em segundo lugar, suponhamos que a primeira tarefa tenha sido realizada. É realmente impossível, mas suponhamos que tenha sido realizada. Você tem o Jesus histórico – um mestre da justiça, um profeta inspirado, um adorador puro de Deus. […] Mas tudo em vão! […] Há uma contradição bem no centro do Seu ser. Essa contradição surge de sua consciência messiânica. (MACHEN, 1951, p. 176-7).
Aqui temos um grande problema, afirma Machen. Para os mesmo liberais que afirmam, por meio da crítica histórica, que Jesus tinha uma consciência messiânica, “um humilde mestre que pensa ser o juiz da terra […] seria um insano” (MACHEN, 1951, p. 176-7).
“Em terceiro lugar, o Jesus liberal é insuficiente para explicar a origem da Igreja Cristã. O poderoso edifício da cristandade não foi construído em um pin-point” (MACHEN, 1951, p. 176-7). E, nas palavras de Machen, “história odeia um vácuo” (MACHEN, 1951, p. 181-2). Para Machen, “A Igreja Cristã […] é fundamentada na ressurreição de Cristo dos mortos. Se a ressurreição é negada, então a origem da Igreja torna-se um problema insolúvel” (MACHEN, 1997, p. 58). “A igreja não foi fundada na memória de um mestre morto, mas na presença de um Senhor vivo. A mensagem, ‘Ele ressuscitou’ – é o coração do Evangelho” (MACHEN, 1997, p. 59). Com essas três considerações, Machen revela a contradição entre as conclusões dos liberais com seus pressupostos anti-sobrenaturais.
Em suma, Machen tinha o estudo da história como essencial para o estudante das Escrituras. Por ser um livro histórico, a Bíblia faz daqueles que a desejam entendê-la verdadeiros historiadores. O historiador, por sua vez, deve ser coerente com os dados extraídos da pesquisa histórica séria, providenciando assim explicações lógicas para os eventos históricos uma vez que “história odeia um vácuo”. Além disso, deve ser cuidadoso visto que não existe neutralidade na pesquisa histórica. Sem esquecer-se, claro, de não ignorar as pesquisas da crítica histórica.

6 CONCLUSÃO

Temos muito a aprender com o zelo de Machen para com a historicidade do cristianismo. São muitas as implicações extraídas das colocações feitas pelo teólogo de Princeton. Aqui queremos alistar cinco:
Em primeiro lugar, intelectualidade não é antagônica à espiritualidade. Não podemos apelar à providência sempre estivermos diante das acusações feitas por estudiosos ignorando os fatos que se impõe; nem muito menos supersticiosamente ignorar os dados do estudo crítico. Em contraponto, ao mesmo tempo em que nos desafia ao estudo profundo, Machen reconhece que toda análise é direcionada por pressupostos.
Em segundo lugar, o assentimento da historicidade dos eventos bíblicos nos desperta para a tarefa missionária. Por possuir uma mensagem histórica e não “existencial atemporal”, o cristão não pode esperar que o homem encontre dentro de si mesmo o diagnóstico e a resposta para seus problemas. Ele precisa ouvir a notícia da morte expiatória e ressurreição corpórea de Cristo para responder com fé. “A fé vem pela pregação” (Rm. 10.17).
Em terceiro lugar, Machen desafia a igreja a extrair das boas notícias tanto sua doutrina quanto sua ética. A ênfase em ética ou em bons conselhos desvinculada dos eventos chaves do cristianismo nivela a igreja cristã a outras religiões. “É a conexão da experiência presente do crente com a aparição histórica real de Jesus no mundo que previne nossa religião de ser misticismo e faz com que seja cristianismo” (MACHEN, 2001, p.122).
Em quarto lugar, Machen nos ajuda com a tarefa apologética. A fé é uma resposta a um evento histórico (Rm. 10.17), portanto, não pode nascer de dentro de nós mesmo via argumentação. Nenhuma manobra filosófica pode levar pessoas à fé cristã visto que fé é uma resposta (reação) ao anúncio de um evento histórico. Em suas palavras: “não algo [é] que pode ser deduzido ou descoberto […] não filosofia, mas história” (MACHEN, 1951, p. 171).
Por último, Machen desafia aqueles que hoje se denominam “fundamentalistas” a lutar pelos elementos fundamentais da fé como aqueles da primeira fase. Quando estudamos a história de Machen, ficamos tristes em constatar que os “princípios elementares” dos primeiros fundamentalistas tornaram-se “pormenores fundamentais”. A luta dos primeiros fundamentalistas era pela inerrância das Escrituras, a historicidade dos eventos bíblicos etc. Hoje, ser fundamentalista é lutar por ou contra instrumentos musicais, versões, dispensacionalismo  e questões específicas envolvendo a liberdade de consciência. Essa, com certeza, não foi a luta de Machen; certamente não é a minha, e espero que não seja a sua.

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=314