sábado, novembro 07, 2020

38. Espiritualidade e arte

 Espiritualidade Cristã (parte 38/64)

      O cristão evangélico tende a ter uma visão não adequada de pessoas que trabalham com arte, principalmente se essas pessoas querem exercer cargos nas igrejas. Quando um médico vem para uma igreja, indiferente de outros valores, ele é respeitado, como profissional de medicina, isso ocorre também com outros profissionais, mas não acontece sempre com músicos. Em primeiro lugar, e não por todos, mas por muitos, tanto no meio pentecostal quanto no meio tradicional, o músico é mais visto como uma pessoa ligada a vida frívola que frequenta lugares não recomendados, onde se desrespeita valores morais e se escraviza pessoas a vícios. Sim, bares, boates, danceterias, clubes, podem ser lugares onde coisas ruins têm mais possibilidade e liberdade para ocorrerem, mas mundo é mundo, mesmo que em alguns locais as coisas ruins possam ser mais escondidas, mais disfarçadas, elas acontecem. Por outro lado, existem ambientes “pesados” em qualquer área, mesmo num hospital pode haver muito espaço para vícios e adultério.
      Outro ponto é que, como dizem muitos evangélicos, a arte engrandece o homem, o ego humano, não a Deus, por isso mesmo trabalhando nas igrejas os músicos são tão cobrados, julgados, desrespeitados, ainda que existam muitos músicos que de fato não separam arte musical de adoração por música. Mas existe tentação à vaidade também em outros ministérios eclesiásticos, na palavra ela é bem forte, mas aí está o equívoco, um bom pregador é elogiado, mas um músico, principalmente o instrumental, se aparecer demais é porque está dando lugar à carne, e repito, ainda que existam músicos instrumentais que de fato perdem o limite entre liberdade de adoração pelo instrumento e simples exposição de seu talento e técnica. Muitas coisas contribuem para uma visão confusa da arte, e principalmente da música, no meio cristão, e talvez a mais importante seja o fato de que o músico verdadeiro nasce com uma aptidão diferenciada, independente se ele usará isso ou não para a adoração. A princípio alguém pode não necessitar de estudo para ser artista, e isso pode incomodar alguns. 
      Essa diferenciação, que aquele que nasce com ela não tem culpa de possuí-la, pode suscitar inveja em alguns, ainda que mesmo sem talento ou conhecimento muitos se achem no direito de julgar os músicos e suas atuações, todo mundo acha que entende de música só porque pode ouvir. Ninguém, ou poucos, julgam médicos, eles são respeitados, afinal fizeram uma faculdade difícil e cara, possuem anos de treinamento, mas os músicos são tantas vezes destratados. É importante salientar que isso ocorre mais com o músico instrumental, como citei antes, já que o vocal, na mentalidade de muitos evangélicos, principalmente de pentecostais, é visto como pregador, que ao invés de discursar ou ensinar a palavra, usa a música para “profetizar”. É justamente aí onde muitos confundem unção espiritual com paixão emocional, e é nesse ponto que o assunto ganha interesse nesta reflexão, dentro do estudo, “Espiritualidade Cristã”. Como pensamos ser espiritual uma cantora, afinada, apaixonada, enfática, e cantando textos do antigo testamento, mas seria isso suficiente para que alguém tenha espiritualidade?
      Naquilo do cristianismo original que se tornou catolicismo, logo nos primeiros séculos foi retirado a música nas missas cantada por leigos, só corais, estrategicamente colocados nos locais traseiros dos templos, ou em outros lugares, mas sempre meio escondidos, faziam os cânticos, isso por vários motivos. Um deles era a necessidade, dentro de uma seita que se afastava de Deus e calava o Espírito Santo, de ter controle e padronização na liturgia, assim mais e mais foi se perdendo a liberdade de culto, em muitos aspectos. Foi só com a reforma protestante no século XVI que o cristianismo voltou a uma música de adoração executada por leigos e não só por um grupo profissionalizado. Além disso surgiu o conceito de louvores, usando-se muitas vezes músicas seculares com letras sacras, o que hoje chamamos de hinos eram os “corinhos” do início do protestantismo. Nisso vemos de novo a tendência do ser humano de se acomodar e “tradicionalizar” as coisas, buscando segurança preguiçosa em verdades antigas sem se dar ao trabalho de se renovar pela viva comunhão com o Espírito Santo. 
      Parece que o ser humano é obcecado por tradições, e quando acha algo, ainda que tenha sido algo novo que tenha tido alguma dificuldade para se assentar nas cabeças das pessoas, já que via de regra os homens são avessos a novidades, ele “tradicionaliza” e se acomoda. Vemos isso em movimentos recentes na área musical que afetaram muitas igrejas evangélicas, algo que há pouco mais de vinte anos era novidade, agora virou tradição, desde simples termos modistas como “gospel” e “worship”, ao estilo “mantra” (repetição de palavras ou frases ad infinitum) como meio para levar “adoradores” ao êxtase. Assim, quem aparece e usa essas tradições é respeitado por muitos como espirituais, isso vai até alguém com coragem e algum talento inventar uma nova moda. A espiritualidade verdadeira do Espírito Santo não precisa de modas, e é viva mesmo que se cante um hino de quinhentos anos, assim, a verdade é que tanto faz a arte, se ela de fato é instrumentalizada por alguém que de fato só deseja adorar a Deus. A espiritualidade afeta a alma, como a arte, e muito como a música, mas a verdadeira espiritualidade começa no espírito. 
      Contudo, nem todos se sentem confortáveis com todo tipo de expressão artística, assim não se deve tentar generalizar, forçando todos a louvarem de um jeito, correndo o risco de escandalizar, e nem julgar um músico por sua formação e estilo musical, correndo o risco de ser preconceituoso, ambos os erros podem afastar as pessoas das igrejas, se essas não acharem uma música de adoração que abrace seu louvor pessoal, seja como adoradores ou como “ministros” de louvor. O mais sábio é permitir que o Espírito Santo tenha liberdade no maior número de pessoas possível, já que agradar a todos e sempre é impossível, e liberdade com alguma ordem social, já que somos seres civilizados. Seja como for, falsa unção e tradicionalismo são dois equívocos que ocorrem no uso da arte musical nas igrejas, e que podem se travestir de espiritualidade, um liberando a alma, o outro aprisionando-a, sem que haja um equilíbrio do espírito humano no Espírito Santo de Deus. Infelizmente, enquanto neste mundo, a alma sempre estará em conflito, sendo tentada pela carne, ainda que sensível ao espírito. 

      “E sucedeu que, quando os que levavam a arca do Senhor tinham dado seis passos, sacrificava bois e carneiros cevados. E Davi saltava com todas as suas forças diante do Senhor; e estava Davi cingido de um éfode de linho. Assim subindo, levavam Davi e todo o Israel a arca do Senhor, com júbilo, e ao som das trombetas. E sucedeu que, entrando a arca do Senhor na cidade de Davi, Mical, a filha de Saul, estava olhando pela janela; e, vendo ao rei Davi, que ia bailando e saltando diante do Senhor, o desprezou no seu coração.”
      “E, voltando Davi para abençoar a sua casa, Mical, a filha de Saul, saiu a encontrar-se com Davi, e disse: Quão honrado foi o rei de Israel, descobrindo-se hoje aos olhos das servas de seus servos, como sem pejo se descobre qualquer dos vadios. Disse, porém, Davi a Mical: Perante o Senhor, que me escolheu preferindo-me a teu pai, e a toda a sua casa, mandando-me que fosse soberano sobre o povo do Senhor, sobre Israel, perante o Senhor tenho me alegrado. E ainda mais do que isto me envilecerei, e me humilharei aos meus olhos; mas das servas, de quem falaste, delas serei honrado. 
      E Mical, a filha de Saul, não teve filhos, até o dia da sua morte.” 
II Samuel 6.13-16 e 20-23

      A passagem inicial relata um típico encontro entre alguém, que por algum motivo está afastado de Deus, no caso Mical, e outra pessoa, absolutamente livre para adorar a Deus, alguém que num determinado momento não teve sensibilidade para pôr a espiritualidade de alguém acima de seu rancor, e alguém que não se importava com a opinião dos homens, ainda que fosse alguém afetivamente muito próximo. Mas ainda assim o texto não nos autoriza a classificar como espiritual aquele que se solta fisicamente no louvor, muitos podem ser espirituais, ainda que discretos e silenciosos, o texto só nos ensina que importa mais é agradar a Deus, de que maneira? Da maneira mais sincera e coerente possível, de acordo com a verdade pessoal de cada um. O final do texto é triste, e Deus não nos poupou dessa informação em sua palavra, Mical, a amada de Davi, foi estéril por toda a vida, nunca teve filhos, que cada um tire suas próprias conclusões e ligue as coisas. Esse texto diz muito sobre Davi, um homem espiritual, ainda que um homem, e também pode nos ensinar sobre a “Mical” que às vezes pode se apresentar dentro de cada um de nós.
      Além da percepção (ou pelo menos mais acentuada no plano físico) de tempo, assunto que já pensamos neste estudo, outra consequência do pecado foi a divisão do ser humano em partes, partes que têm dificuldades para coexistirem em harmonia, e que estão o tempo todo em conflito dentro de nós. Isso não acontecia antes do ”pecado original”, nem acontecerá na melhor eternidade com Deus, o céu. Assim, o corpo luta contra o espírito e ambos deixam a alma desequilibrada e atormentada, por isso a expressão artística humana causa tanta polêmica, principalmente num meio cristão imaturo e arrogante, que acha que pode ditar regras por se achar o “último biscoito do pacote” na espiritualidade. Sempre uso no “Como o ar que respiro” o conceito de tricotomia que entende o ser humano como corpo, alma e espírito. O corpo é a parte física, material, estudada pela ciência. O espírito é parte vista pelas religiões, o sopro de Deus que nos faz diferentes dos animais e da natureza, que é selado com o Espírito Santo quando há conversão pelo nome de Jesus, e que pode se relacionar com Deus. 
      A alma, contudo, é a interface, fica no meio, entre o corpo e o espírito, ela é a primeira que interpreta o entendimento e o sentimento do espírito, seja pelo intelecto, a mente, ou pelo chamado “coração” (não o órgão físico), com consciência de pensamentos e de sentimentos. Nossa identidade presente, no plano físico, está contida na alma, já que a eterna, que está em nosso espírito, só conheceremos de fato totalmente na eternidade (eis aqui um mistério para os que têm “ouvidos” ouvirem). A partir desse entendimento humano o corpo é informado para então reagir, seja pelos sentidos ou por movimentos mecânicos. No plano espiritual do melhor de Deus (o céu, não o inferno), existirão o espírito com uma comunhão mais plena com o Espírito Santo, e um novo corpo, transformado, mas não físico, além de uma alma em perfeita harmonia com tudo isso. Obviamente é o corpo físico que terá sua maior mudança no plano espiritual, mas penso que é a alma que terá mais benefícios, porque será uma só com um espírito, em total comunhão com o Espírito de Deus, e novamente me refiro aqui à existência espiritual na melhor eternidade de Deus. 
      Existirá arte na eternidade? Talvez aqueles que “demonizam” arte e artistas dirão, não haverá, lá Deus será glorificado, não o homem, mas é justamente o contrário, haverá arte e numa plenitude muito maior, a vida no paraíso será pura arte. Você nunca se perguntou por que gosta tanto dos textos do livro de Salmos? Pois bem, Davi foi um homem que conseguia equilibrar de maneira maravilhosa corpo, alma e espírito, pelo menos em seus textos, ele harmonizava estética artística (poética e musical) com unção (revelação, adoração, exortação espirituais) de uma maneira que consegue falar com homens de tempos e de lugares diferentes. Imagine termos na eternidade uma comunicação semelhante a muitos textos dos Salmos, onde num olhar um ser que esteja no paraíso consiga transmitir, sem palavras (e na velocidade do pensamento), um poema, uma música, um quadro, uma escultura, um filme inteiro, e não só com estética artística, mas também com unção, a verdadeira unção de Deus, que nos transborda de prazer, de paz e de um desejo profundo e intenso de sermos santos, amorosos e agradarmos ao Deus altíssimo.
      Ah, se os artistas, e todos nós somos artistas em algum ponto, entendessem essa interação de arte com unção, de música com adoração, de alma com espírito, e se ou outros dessem a esses artistas o direito e a liberdade para serem ferramentas nas mãos de Deus. Sempre é preciso dizer que o homem que Deus mais usou em Israel, para colocar o povo de Deus em sua posição máxima neste mundo, não foi um Saul, mas um Davi, alguém fisicamente menor, mas com uma iluminação espiritual e artística especiais. Por que isso? Porque havia em Davi um cuidado para todas as áreas de seu ser, ele também era um bom soldado e um excelente líder político, mas dando prioridade não para o corpo, mas para o espírito e a alma. É dito que antes da descida do Espírito Santo em pentecostes, Davi foi o homem que mais provou da unção do Espírito Santo, ele andava em unção, Davi era espiritual. Contudo, eu fico só imaginando, como músico que sou, a beleza das músicas que serão executadas na eternidade, vocal, instrumental, tudo junto, porque lá o ser humano será íntegro no amor de Deus, não mais partido, em sua mais elevada espiritualidade.
      O plano físico não é a realidade eterna, é só uma expressão material e passageira dela, ainda assim, tudo que existe nele, a natureza, os animais, a terra e todas as diversidades, incluindo a de seres humanos, é lindo. Um quadro de uma paisagem pode ser belo, mas é só a expressão artística humana da natureza real, não é a paisagem de verdade, assim é todo o plano físico, uma expressão artística de Deus. O universo material é uma maravilhosa obra de arte de Deus, um jeito de Deus expressar o plano espiritual. A beleza original e eterna está no plano espiritual, o mundo e os seres humanos encarnados, perto do que existe no plano espiritual, são só um quadro, limitados às dimensões físicas. Deus é um artista, o melhor deles, e nós somos suas obras primas, ainda que necessitando de restauração. A restauração foi habilitada por Jesus e Deus a faz usando não qualquer material, assim como não altera o que resta do original, escondido debaixo de sujeiras, remendos e buracos. O Espírito Santo, o material original, é usado, que nos limpa e nos completa, deixando-nos com a beleza que havia no coração de Deus quando nos criou. 

“Espiritualidade Cristã”
é um estudo dividido em 64 partes,
por favor, se possível, leia todas as reflexões 
para melhor entendimento do assunto abordado.
José Osório de Souza, 30/09/2020.

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