quinta-feira, maio 14, 2020

Reavaliemos Comunicação com mortos e a Teologia (14/30)

14. Comunicação com os mortos e a Teologia

      Neste texto, a finalização da reflexão sobre comunicação com mortos, no outro texto analisamos passagens bíblicas que falam sobre o assunto, aqui análises teológicas, um pouco diferentes entre si, mas que representam a opinião da grande maioria de protestantes e evangélicos sobre o tema. Lembrando que este texto é uma das partes do estudo “Reavaliemos nossas crenças”, que traz à tona temas importantes e polêmicos sobre a doutrina cristã, se possível leia todo o estudo para ter uma opinião sobre o ponto de vista do “Como o ar que respiro” sobre o assunto. 

      Na defesa da Bíblia ser a palavra de Deus, é muito importante que ela seja coesa, isso é, não se contradiga e se auto-explique, como poderia se defender algo como dito por Deus se contivesse incoerências, interpretações dúbias? Assim teólogos protestantes se esforçam para não acharem na Bíblia textos que se contradigam, nisso podem forçar certas interpretações, em minha opinião. A Bíblia pode ter três camadas de interpretação: o que Deus pode dizer através dela, o que os homens quiseram e querem dizer através dela, e o que nós queremos que ela nos diga, em cada uma dessas camadas acha-se coesão. Coesão é relativa, vê-se coerência onde se quer ver, busca-se integridade naquilo que se quer achar, como sempre a subjetividade humana é quem dá a palavra final, não Deus, coesão não existe por si, é algo buscado, defendido, construído.
      Os teólogos protestantes constróem sua coesão bíblica sobre a tradição judaica e a igreja primitiva, assim, textos como I Samuel 28 (Saul consultando a médium de En-Dor) e Lucas 9 (a transfiguração de Cristo), se apresentam para eles como exceções que exigem deles esforço maior para casarem suas interpretações com o que eles defendem ser a teologia geral da Bíblia sobre comunicação de vivos com mortos. Abrindo parênteses, a Igreja Católica permite oração pelos mortos apoiada na citação de Macabeus I 12.38-45, livro considerado apócrifo pelos protestantes e não presente na Bíblia evangélica, essa doutrina está atrelada à doutrina católica do purgatório, assim católicos oram pelos mortos para que esses passem do purgatório ao céu (leia neste link a respeito), fechando parênteses.

      Uma análise séria sobre I Samuel 28, defendendo sobre muitos aspectos técnicos a doutrina protestante tradicional sobre consulta aos mortos que diz que isso é tanto proibido por Deus quanto impossível, é feita pelo teólogo, mestre e missionário, Russell Shedd, nas Bíblias Vida Nova e Shedd, segue transcrição de parte de sua análise:
      “A crônica de 7-25 fora escrita por uma testemunha ocular, logo por um dos servos de Saul que o acompanhara à necromante. Frequentemente esses servos eram estrangeiros e quase sempre supersticiosos, crentes no erro, razão porque o seu estilo é tão convincente. Esta crônica que é parte da história de Israel pela determinação divina, entrou no cânon sagrado e deve estar lá, como lá estão os discursos dos amigos de Jó, as afirmações do autor de “debaixo do sol”, a fala da mulher de Tecoa etc - palavras e conceitos humanos. (Infelizmente esta crônica é interpretada por muitos sobre o mesmo ponto de vista do servo de Saul).” 
      “Quem respondeu a Saul? Sugerimos a seguinte possível explicação, a Bíblia fala de certos espíritos, sua natureza e seu poder. São os anjos maus. Do mesmo modo fala de anjos que acampam ao nosso redor e nos guardam. São os anjos bons. São dois, os “secretários” (se não mais) que nos acompanham durante a vida toda, um bom e outro mal. Anotam tudo e sabem tudo a nosso respeito. Depois da morte o anjo bom leva o nosso livro-relatório diante de Deus pelo qual seremos julgados. Por sua vez o anjo mau assume a nossa identidade e representa-nos no mundo através dos médiuns, onde revela o nosso relatório com acerto e “autoridade”. É por isso que Paulo fala da luta que temos contra as forças espirituais do mal e é pela mesma razão que Deus proíbe consultas aos “mortos”, porque estes são falsos. Caso fossem espíritos humanos, provavelmente, Deus não proibiria a sua consulta, apenas regulamentaria o assunto para evitar abusos. Deus, porém, proíbe o que é dissimulação e falsidade.” (Bíblia Shedd, 1ª edição, 1998, Edições Vida Nova, parte dos comentários de rodapé das páginas 430 e 431 sobre o texto de I Samuel 28.7-25)

     Para defender seu entendimento bíblico, Shedd dá a sua interpretação do texto, que ao meu ver, em alguns aspectos, é forçada, sacrificando exegese por uma coesão teológica que ele tenta ver. Isso ocorre quando diz que o texto pode ter sido escrito por um servo estrangeiro de Saul, que estava enganado sobre o que de fato tinha testemunhado. Sob esse ponto de vista, alguém registrou uma mentira na Bíblia e isso, mesmo depois de anos de revisões feitas principalmente por líderes judeus, não mereceu de ninguém uma explicação de que é mentira, simplesmente ficou registrado como uma declaração verdadeira, e justamente uma passagem que fala sobre algo de proibição tão clara na Bíblia (Deuteronômio 18.10-13).
      Shedd defende esse argumento dizendo que isso ocorre também em outras passagens na Bíblia, dá como exemplo passagens do livro de Jó com os discursos dos amigos de Jó. Ao meu ver, no livro de Jó é diferente, aliás não existe nenhuma polêmica sobre as passagens de Jó, lá está registrado de maneira clara que os argumentos dos amigos de Jó são equivocados, que o que Jó experimenta é um embate ideológico que tenta suas convicções. As afrontas ideológicas dos amigos de Jó são parte importante na tentação do homem de Deus, que no final do livro reconhece a soberania de Deus, assim como seus amigos são punidos por Deus por terem falado a Jó coisas erradas sobre Deus (Jó 42.7).
      Além disso, Shedd usa argumento não bíblico para defender uma possível simulação maligna do espírito do morto Samuel, que pode ter ludibriado o servo de Saul responsável pelo relato enganoso. O argumento é um conhecimento do esoterismo, sobre o “anjo bom” e o “anjo mau”, que não tem base bíblica direta. Interessante o professor basear-se no princípio que a Bíblia explica a própria Bíblia em um ponto, e usar algo que não está na Bíblia para achar coesão na Bíblia em um outro ponto. Mesmo que eu não tenha qualquer intenção de descreditar Russell Shedd, homem de magnífica importância para a teologia no Brasil e no mundo, não tenho receio de discordar dele sobre o texto de I Samuel 28, a eternidade nos esclarecerá.

      Outra análise muito interessante sobre I Samuel 28, que representa mais a minha opinião, e que abre a porta para um conhecimento mais profundo de Deus através da Bíblia, é feita pelo pastor e teólogo Augustus Nicodemus Lopes (clique no link para ver o estudo completo). Essa análise ainda defende a posição tradicional protestante que diz que consulta a mortos é proibida por Deus na Bíblia, todavia, diz que tanto o aparecimento de Samuel já morto na passagem de I Samuel 28, como o aparecimento de Moisés e Elias já mortos a muito mais tempo em Lucas 9, são exceções feitas pelo próprio Deus. Realmente foi o espírito de Samuel que apareceu a Saul, não foi um engodo do diabo, nem charlatanismo da feiticeira, nas palavras do reverendo Nicodemus, “pois Deus mesmo faz as regras e as suspende de acordo com sua soberana vontade e com seus propósitos”. 
      Isso pode ser difícil de ser aceito por uma grande maioria de cristãos, pois contraria um mandamento de Deus assim como a doutrina protestante tradicional, mas é o único jeito de ser fiel ao texto bíblico, sob o ponto de vista exegético. Em nenhum momento, como ocorre em outras passagens bíblicas, é dito que o diabo aparece enganando Saul, mas que é Samuel quem aparece. Contudo, os que discordam dessa interpretação são os mesmos que defendem interpretações da Bíblia ao pé da letra em tantas outras passagens, assim fazem uma exceção neste caso, mas a interpretação ao pé da letra de I Samuel 28 nos leva a acreditar que Deus faz uma exceção, e ele pode fazer isso, quando permitiu que o espírito verdadeiro do morto Samuel aparecesse ao teimoso Saul, experiência que só aumentou sobre Saul o juízo de Deus.
      Uma das coisas que mais me agradam na Bíblia são justamente os pontos que sob o ponto de vista humano são considerados polêmicos, só sob o ponto de vista humano, não de Deus. Passagens assim mostram a total liberdade que o Espírito Santo teve para orientar os registros bíblicos, sem se preocupar em ser teologicamente sistemático, sem se acomodar às caixas humanas, sem revelar todas as verdades de Deus, mas também sem escondê-las, sem escancarar as limitações humanas, mas também sem escondê-las. Enfim, a Bíblia não é para ser lida como um livro de leis objetivas para então ser obedecido cegamente (sem pensar ou sentir), é preciso usar a inteligência, o bom censo, mas também o discernimento espiritual e o amor de Deus. Eu pessoalmente não acho que Deus fez uma exceção para Saul e para Jesus na transfiguração, só penso que a maioria dos cristãos não está preparada para a verdade de Deus, por isso é melhor que certas coisas, ao menos por enquanto, sejam simplesmente proibidas. 

Esta é a 14ª de 30 partes do estudo
“Reavaliemos nossas crenças”,
se possível leia todo o estudo
para ter o entendimento correto
do “Como o ar que respiro”
sobre o assunto, obrigado.

José Osório de Souza, 13/04/2020

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